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February 17, 2021
Alguns filmes encapsulam o verdadeiro espírito de grandes cidades para além das imagens fabricadas pelos estereótipos e pelo turismo. No caso do Rio de Janeiro, é uma tarefa particularmente árdua romper com a mitificação da terra que há décadas tem na marchinha Cidade Maravilhosa de André Filho seu hino não-oficial (hoje já devidamente oficializado); possui sua iconografia calcada em pontos turísticos imediatamente reconhecíveis, como o Cristo Redentor e o Pão de Açúcar; foi mimetizada em estúdio como palco para a comédia musical em preto-e-branco das chanchadas; teve suas avenidas, praias e hotéis de luxo explorados com avidez technicolor pelo cinema hollywoodiano e foi personificada internacionalmente em "embaixadores" do quilate de Carmen Miranda e Antônio Carlos Jobim. Esse é o Rio que é vendido para o Brasil e para o mundo, mas os verdadeiramente interessados em descobrir o que há por detrás da fachada sabem que, desde que o samba é samba, sempre houve mais.
Quando Orson Welles foi exportado ao Rio pela “política da boa vizinhança” estadunidense, para filmar o carnaval e integrá-lo ao seu projeto documental It's All True1, foi guiado entre a elite financeira local pelo poeta e diplomata Vinícius de Moraes, mas se fascinou mesmo pelo ator Grande Otelo2, e com ele subiu os morros cariocas para descobrir o "real Rio", o Rio do povo preto e mestiço que é às vezes boêmio, mas sempre trabalhador; o Rio das populações marginalizadas que são legítimas autoras das festas populares, que a oficialidade tenta a todo custo domesticar e elitizar. Welles descobriu que o povo do Rio de Janeiro (e o verdadeiro carnaval organizado por ele) ia muito além das imagens coloridas que chegou a filmar nos estúdios da Cinédia.
De acordo com os registros que hoje possuímos, é possível dizer que o mais próximo que esse "real Rio" já havia chegado de ser representado no cinema brasileiro de então fora na tentativa do veterano cineasta Humberto Mauro, em seu Favela dos Meus Amores, de 1935 (hoje tido como um filme perdido). Mais de dez anos depois da visita do diretor de Cidadão Kane ao Brasil, Nelson Pereira dos Santos escancara os contrastes sociais e urbanos da "cidade maravilhosa" em seu Rio, 40 Graus, de 1955 – rompendo tantas barreiras nesse sentido que chegou a ser objeto de uma censura promovida pela polícia do estado do Rio de Janeiro, sendo liberado apenas após intensa campanha a seu favor entre a intelectualidade e a imprensa. Em muitos sentidos, Nossa Escola de Samba, filme de vinte e oito minutos de 1965, dirigido e montado por Manuel Horácio Gimenez, é mais uma légua aberta no caminho trilhado por Humberto Mauro, Orson Welles, e Nelson Pereira dos Santos, que no entanto vai além, e nesse sentido se beneficia ao participar de um "zeitgeist" próprio do cinema brasileiro da década de 1960: o documentário social.
Esse estilo de produção é um dos alicerces da primeira fase do Cinema Novo, apesar de não se limitar a ele e compreender também uma série de filmes realizados por autores ou artesãos (para utilizar as denominações empregadas por Glauber Rocha3) que estavam à margem do “núcleo duro” cinemanovista ou mesmo em uma lógica totalmente à parte. De maneira enxuta, podem ser citados como representantes ilustrativos do documentário social brasileiro sessentista filmes como o Aruanda (1960) de Linduarte Noronha, o Arraial do Cabo (1960) de Paulo Cezar Saraceni, o Viramundo (1965) de Geraldo Sarno, o Maranhão 66 (1966) de Glauber Rocha e o A Opinião Pública (1967) de Arnaldo Jabor. Mesmo filmes de ficção (pertencentes ou não aos ciclos do Cinema Novo), como a antologia Cinco Vezes Favela (1962), produzida pelo Centro Popular de Cultura da União Nacional dos Estudantes, ou a produção sueco-brasileira Mitt hem är Copacabana (1965), possuem clara influência dos caminhos abertos pelo documentário social na cinematografia brasileira, apesar de também terem raízes profundas no ficcional Rio, 40 Graus (talvez responsável, ele mesmo, por certas tendências do documentário social sessentista).
No caso específico de Nossa Escola de Samba, no entanto, o parentesco maior está, mesmo, com o supracitado documentário social da década de 1960. O nome chave para entender o filme é o de Thomaz Farkas, figura fundamental não apenas para o desenvolvimento do documentário social no Brasil, mas para a história do cinema brasileiro como um todo. Fotógrafo, produtor e diretor, o cineasta húngaro-brasileiro possui extensa filmografia e foi o responsável pela organização do filme-antologia Brasil Verdade (1968) – agrupamento de curta-metragens produzidos por ele e viabilizados sobretudo graças a seus esforços na importação de equipamentos para a captação de som direto. Até então praticamente inédito no cinema brasileiro, que tinha a parcela majoritária de sua produção dublada em estúdio, o som direto captado por tais equipamentos já permitia, mesmo de maneira inicialmente rudimentar, uma mudança de paradigma em certos projetos, entre os quais o documentário evidentemente figura como um dos maiores beneficiários.

Nossa Escola de Samba está entre os curtas selecionados para a composição do Brasil Verdade de Thomaz Farkas, e se relaciona com os demais componentes da antologia (Memórias do Cangaço, Subterrâneos do Futebol and Viramundo) por meio da intertextualidade que os curtas possuem na discussão sobre os aspectos políticos, sociais e culturais do Brasil naquele momento do pós-golpe militar de 1964. Originalmente rodados em bitola 16mm, os curtas foram ampliados para 35mm no processo de elaboração do longa.
Informações acerca de Manuel Horácio Gimenez, argentino escolhido por Farkas para dirigir Nossa Escola de Samba, são pouco numerosas e relativamente esparsas. Seus créditos anteriores o apontam como co-roteirista ou diretor de segunda unidade em produções argentinas como Tire dié (1958), La primera fundación de Buenos Aires (1959) e Los inundados (1962). Nossa Escola de Samba (e Brasil Verdade, por extensão) parece ter sido sua única contribuição significativa para o cinema brasileiro (o que, apesar da quantidade unitária, não é pouca coisa). Um cineasta argentino à frente de um documentário sobre o carnaval carioca pode parecer uma escolha inusitada, mas ainda que Nossa Escola de Samba potencialmente corresse o risco de resultar em um olhar acerca de tal fenômeno filtrado por um distanciamento frio causado pela barreira geográfica, o que se vê no produto final é justamente o contrário. O distanciamento talvez até esteja lá, mas de frio não tem nada: Gimenez se envereda pelo ambiente de seu documentário com olhos livres e sede de compreensão daquele universo, e com uma atenção para detalhes que talvez um cineasta brasileiro não possuísse por já estar mais ou menos familiarizado com aquela manifestação cultural.

O curta acompanha a preparação de um ano para o desfile de carnaval do Grêmio Recreativo Escola de Samba Unidos de Vila Isabel, e é alicerçado quase que como texto-fonte nos depoimentos de Antônio Fernandes da Silveira, o “China”, um dos sócios-fundadores da agremiação (também retratado no filme, e cuja fala funciona como narração em off durante toda a sua extensão). A câmera de Gimenez adentra o cotidiano do morro do Pau da Bandeira, onde vivia uma parte majoritária dos participantes da Escola, e investiga a vida de certo estrato social brasileiro utilizando a comunidade como microcosmo e as mudanças na rotina promovidas pelos preparos para o carnaval como fio condutor. O cineasta argentino resume, dizendo que “vemos no filme como é a vida no morro e como ela se transforma à medida que chega a época do carnaval. Acompanhamos o desfile da Escola na Avenida em todos os detalhes e o filme termina com os participantes voltando ao trabalho cotidiano, uma vez terminada a festa. A imagem e o som direto conseguem captar os personagens com muita naturalidade em seus ambientes cotidianos e suas expressões musicais autênticas”.4
“Florinda é nossa porta-bandeira”, diz China, em i, sobre as imagens do primeiro ensaio capturado pelas câmeras, “trabalha numa fábrica de tecidos. E os outros componentes, a maior parte são pedreiros, eletricistas, empregadas domésticas; outro é até motorista; pintores tem uma porção. Até a Ana Lúcia – a filha do "Suco", a mais novinha – já tá pensando em trabalhar. Suco é mecânico, e vem me chamar todo dia de manhã, pra gente descer junto pro trabalho”. Já nos primeiros momentos do filme, o casamento das imagens (que mostram o vívido ensaio entoado pelo samba-enredo que a Escola escolhera para apresentar ante o Theatro Municipal) com o som apresentam o contraste entre a vida profissional cotidiana do povo retratado com o momento em que sua labuta diária é como que suspensa para segundo plano, para dar lugar aos esforços para o carnaval.

A celebração popular é existente enquanto uma força coletiva da comunidade, que mobiliza esforços de todos os setores e os une em prol de um objetivo geral (segundo China, “quando começam os ensaios, o samba é um micróbio pra nós”). Os preparativos já ocorrem desde o mês de outubro – seis meses antes do carnaval – quando os ensaios para o desfile tem início na quadra esportiva local. No entanto, em momento algum a população é colocada como uma massa amorfa e uníssona. Atestando a diversidade dentro da organização, é possível selecionar sequências como a que “China” explica, em dado momento, que “a maior parte das alas vem de cima do morro, porque o pessoal do morro tem mais gabarito, já sabe fazer revolução, conhece mais o que é samba; o crioulo tem mais sangue, samba mesmo é do preto, mas tem branco que não fica pra trás”.

Gimenez não perde a oportunidade de, em meio às irresistíveis imagens carnavalescas que registram o aspecto coletivo do ensaio, ceder uma fração de tais sequências para pequenos momentos de ternura individual: durante a narração em off na qual China descreve as ocupações profissionais daqueles presentes no ensaio, por exemplo, a montagem intercala um plano da filha de “Suco”, dançando e cantando em meio ao ensaio, com um de seu pai, observando à distância com os olhos marejados em sua vigilância paternal.
Essa lógica estabelecida de maneira simples e orgânica – a de justapor o pessoal e o grupal, o rotineiro e o extraordinário – serve como base para todo o filme; Gimenez parece querer de fato expor o dia a dia dos habitantes do morro do Pau da Bandeira, em detrimento de focar exclusivamente no que é relativo ao carnaval. Ao captar uma manhã na comunidade, mostra problemas enfrentados pelas favelas, como a falta d’água, na mesma medida em que dá espaço para imagens tenras como crianças comendo à mesa. Nesse sentido, o olhar de Gimenez, curioso e genuíno em seu carinho, para com o morro do Pau da Bandeira mostra-se de fato muito mais similar ao de um Rio, 40 Graus de Nelson Pereira do que, por exemplo, dos posteriores favela movies da retomada e da pós-retomada do cinema brasileiro5, com sua “cosmética da fome”6 que utilizava as favelas como pouco mais do que um pano de fundo para uma estilização exploitation.

Mesmo quando o foco é, a rigor, a preparação para o desfile de carnaval, Nossa Escola de Samba faz questão de dar sequência aos ensaios com o que acontece após o término dos mesmos: os trabalhadores do carnaval relaxam, tomam uma cerveja, fumam um cigarro, conversam em clima de informalidade; vendedores ambulantes circulam pelo terreiro, casais namoram, vizinhas fofocam, um ou outro bamba circula de terno e camisa engomada, e China explica as diversas frentes de arrecadação empreendidas pela Escola para tornar seu carnaval financeiramente viável.
Gimenez segue de maneira cronológica os preparativos propriamente ditos: os primeiros ensaios; as idas ao Theatro Municipal para o acerto de questões de ordem mais burocrática; a construção dos carros alegóricos nos barracões; a moldagem artesanal de figuras de barro; os sorteios para a delegação de determinadas responsabilidades; a preparação dos figurinos pelas costureiras; a pintura dos cenários. Quanto mais o carnaval se aproxima, mais visível se torna, na prática, a fala de China que referencia o festejo como um “micróbio” que cativa a todos no morro do Pau da Bandeira: quando é anunciado pelo filme que faltam dois meses para o desfile, se inicia o som, ainda em off, de uma batucada que pode ser confundida facilmente pelo espectador com aquela presente nas sequências anteriores, que mostram os ensaios na quadra esportiva. No entanto, logo é revelado que a manifestação é completamente espontânea: em um pátio entre as casas, moradores batucam em pandeiros ou mesmo em latas de tinta; cantam em coro, distribuídos em roda, enquanto ao centro homens, mulheres e crianças ingressam na dança. Em um botequim ao pé do morro (que Gimenez retrata com riqueza de detalhes capaz de imergir completamente o espectador que porventura seja aficionado pela cerveja, pela música e pela conversa), o samba escolhido pelos populares como favorito é cantado nas mesas e embalado por triângulos, batidas na madeira ou em caixas de fósforo – que, na mão de sambistas, são instrumentos tradicionais para o gênero musical. Em uma fusão extremamente natural e por isso mesmo digna de nota, a música passa a ser entoada por um coro de vozes femininas quando o filme deixa o bar e retorna aos ensaios gerais.

Quase tão apoteótico quando desfile final é o momento que o antecede, quando a população do morro do Pau da Bandeira ganha o asfalto e chega ao centro do Rio de Janeiro, compondo os blocos de rua com um fogo e uma animação que, em poucos minutos, sintetizam o que há de verdadeiro e popular no carnaval dos blocos. É possível notar que o derradeiro desfile, à parte da mudança de locação e da presença dos figurinos completos, em pouco se diferencia dos ensaios retratados anteriormente: o clima estabelecido pelo cineasta e pelos que ali estão sendo documentados é o mesmo, colocando em par de igualdade e importância, filmicamente, os ensaios e o resultado final. Nossa Escola de Samba, aliás, já representa um carnaval de outro tempo, de outra época, em que os desfiles de carnaval no Rio de Janeiro eram realizados no centro da cidade, para todo o povo ver: o Sambódromo da Marquês de Sapucaí, onde são realizados os desfiles atualmente, só seria criado em 1984, anos depois dos eventos capturados por Gimenez. Com um tom que transparece orgulho em sua voz, findo o desfile, China revela que a Unidos de Vila Isabel conquistara o vice-campeonato da segunda categoria na competição entre escolas, “e agora, com a primeira colocada, deixamos a segunda categoria e poderemos desfilar na Presidente Vargas7. Ano que vem, estaremos entre Mangueira, Portela... entre as grandes escolas”.
Após o triunfo da vitória, o morro do Pau da Bandeira retorna ao cotidiano que impera entre o fevereiro pós-carnaval e o outubro que antecede a próxima festa. Gimenez retrata uma manhã posterior à conquista: China olha a cidade do alto, de sua janela. Vozes fora de tela (o som in loco, cortesia dos modernos equipamentos importados por Thomaz Farkas, captura com ouvidos atentos a paisagem sonora do morro) cantam o samba Opinião, de Zé Kéti8 (“falem de mim quem quiser falar / aqui eu não pago aluguel / e se eu morrer amanhã, seu doutor / estou pertinho do céu”). Em algum lugar à distância, cachorros latem. Meninos uniformizados vão à escola, a mãe de Ana Lúcia – a filha de Suco, que tivera um lampejo de destaque no primeiro ensaio registrado pelo filme – acorda a menina. O próprio Suco toma café enquanto observa o movimento do morro. As pessoas do Pau da Bandeira continuam a cantar Opinião (“Podem me prender / podem me bater / podem até deixar-me sem comer / que eu não mudo de opinião / daqui do morro, eu não saio não”). Homens e mulheres descem para trabalhar e ganhar o pão. Enquanto o coro infantil repete o fim do refrão do samba de Zé Kéti, até suas vozes sumirem em fade out, o Sol vai subindo e dando início a mais um dia. O morro do Pau da Bandeira, mesmo fora da temporada carnavalesca, ainda é puro samba – ou talvez o samba seja puro morro do Pau da Bandeira. O povo é inalienável da celebração popular que é o carnaval, pois é ele o principal componente do DNA da festa; sem ele, o carnaval não acontece. Nossa Escola de Samba é uma joia subestimada do cinema brasileiro e um dos filmes definitivos sobre uma das maiores celebrações do planeta.
1. Filme inacabado rodado parcialmente por Orson Welles no México e sobretudo no Brasil. Financiado pela RKO, “It’s All True” foi descontinuado devido a uma série de problemas durante suas filmagens, desde a acidental morte de um dos jangadeiros que protagonizaria um dos segmentos do longa até a interferência do Departamento de Imprensa e Propaganda do governo de Getúlio Vargas. Os negativos originais foram tomados pela RKO e tidos como perdidos por décadas, até que foram parcialmente reencontrados e editados em um filme-tributo a Welles (“It’s All True”, lançado na década de 1990).

2. Para mais detalhes sobre o envolvimento de Welles com Grande Otelo, verCABRAL, Sergio: Grande Otelo, uma biografia. São Paulo: Editora 34, 2007, p. 83-93.

3. Ver ROCHA, Glauber: Revisão Crítica do Cinema Brasileiro. São Paulo: Cosac & Naify, 2003.

4. O trecho reproduzido integra uma citação atribuída a Gimenez em um cartaz de “Nossa Escola de Samba”, disponível em reprodução digital em: < thomazfarkas.com/filmes/nossa-escola-de-samba >.

5. “Retomada” é o nome utilizado para designar um período deflagrado em meados da década de 1990, no qual, por meio do estabelecimento de editais e de novas leis de incentivo, o cinema brasileiro voltou a ter números substanciais na produção cinematográfica após anos de escassez causados pela extinção, pelo governo Fernando Collor de Mello, da Embrafilme – produtora e distribuidora de capital misto, fundada em parceria entre os cinemanovistas e o governo militar, em 1969, e desativada em 1990. “Carlota Joaquina, Princesa do Brasil” (Carla Camurati, 1995) é tido como marco-zero da Retomada. Lato sensu, o “pós-retomada” representaria a década de 2000, tendo como expoentes significativos filmes como “Amarelo Manga” (Cláudio Assis, 2002), “Cidade Baixa” (Sérgio Machado, 2005), etc.

6. O termo, cunhado pela pesquisadora Ivana Bentes como uma antítese para a “estética da fome” de Glauber Rocha, foi popularizado a travésde uma crítica de Cleber Eduardo para “Cidade de Deus” (Fernando Meirelles e Kátia Lund, 2002) na Revista Época, disponível
em:
<revistaepoca.globo.com/
Epoca/0,6993,EPT373958-1661,00.html >.

7. A avenida Presidente Vargas é a principal via urbana do centro do Rio de Janeiro.

8. José Flores de Jesus, o Zé Kéti, foi um dos compositores mais importantes da história do samba. Integrante da escola GRES Portela, suas canções foram gravadas pela cantora bossanovista Nara Leão e incorporadas como um dos pilares para o espetáculo teatral “Opinião”, em 1964 – um dos grandes marcos da resistência cultural à ditadura militar brasileira durante seus primeiros anos. Amigo de Nelson Pereira dos Santos, sua composição “A Voz do Morro”, em versão com arranjos orquestrados, está presente na abertura de “Rio, 40 Graus”. Aparece, como ator ou músico, em outros filmes que orbitam o universo do Cinema Novo, como “Boca de Ouro” (1963), também de Nelson Pereira, ou “O Desafio” (1965), de Paulo Cesar Saraceni. Após seu falecimento, foi objeto de um curta-metragem em formato de tributo dirigido por Nelson Pereira dos Santos, o “Meu Compadre Zé Kéti” (2000).
There are films which capture the true spirit of big cities beyond the stereotypical images that can be found in tourism ads. In the case of Rio de Janeiro, it is particularly difficult to break away from the mythical land which, for decades, had André Filho’s carnaval march Cidade Maravilhosa as its unofficial (and now official) anthem. The iconography of Rio de Janeiro, relying on immediately recognizable tourist attractions such as Christ the Redeemer and Sugarloaf Mountain, has been reproduced in interior sets for the black-and-white musical comedies known as chanchadas; its avenues, squares and five-star hotels have been avidly exploited in gorgeous Hollywood technicolor, and it has been personified, internationally, by “ambassadors” as great as Carmen Miranda and Antônio Carlos Jobim. Such is the Rio which is sold for Brazil and the whole world, but anyone truly willing to find out what is behind the façade knows that ever since the samba is the samba,1 there has always been more.
When Orson Welles was exported to Rio by the American “Good Neighborhood policy” to film the carnaval and embed it in his documentary project “It’s All True”2,  his chaperone from the local financial elite was poet and diplomat Vinicus de Moraes. But during his trip it was actor Grande Otelo3  who struck him the most. Otelo took him up the hills to find “the real Rio”, that of the black and mestizo people who might be bohemians but are always hard-working, the Rio of marginalized populations who are the true authors of popular festivities, which official powers are always trying to tame and claim for themselves. Welles found out that the people of Rio de Janeiro (and the real Carnaval, organized by them) was far beyond the color footage he shot at the Cinédia studios.
According to records we now have access to, we can say the closest that “real Rio” had ever come of being portrayed by Brazilian cinema until then was in veteran director Humberto Mauro’s 1935 Favela dos meus amores (considered a lost film). More than a decade after the director of Citizen Kane was in Brazil, Nelson Pereira dos Santos would expose the social and urban contrasts of the “cidade maravilhosa” in his 1955 Rio, 40 Graus - which broke so much new ground that it was subjected to censorship by the Rio de Janeiro state police. The film was only allowed exhibition after an intense campaign in its favor by the intelligentsia and the press. In many ways, Nossa Escola de Samba, a 28-minute 1965 film directed and edited by Manuel Horácio Gimenez, is one more step in the path taken by Humberto Mauro, Orson Welles, and Nelson Pereira dos Santos. In many ways, the film even surpasses them, as it benefitted from a key aspect of the zeitgeist of 1960s Brazilian cinema: social documentaries.
That approach is one of the foundations of the first phase of Cinema Novo, although it is not limited to that movement. Social documentaries were being made by both auteurs and artisans (according to the categories utilized by Glauber Rocha4). To summarize, we can cite 1960s Brazilian social documentaries films such as Linduarte Noronha’s Aruanda (1960), Paulo Cezar Saraceni’s Arraial do Cabo (1960), Geraldo Sarno’s Viramundo (1965), Glauber Rocha’s Maranhão 66 (1966) and Arnaldo Jabor’s A Opinião Pública (1967). Even fictional films (affiliated to Cinema Novo or otherwise), such as the anthology Cinco Vezes Favela (1962), produced by Centro Popular de Cultura da União Nacional dos Estudantes, or the Swedish-Brazilian co-production Mitt hem är Copacabana (1965), are clearly influenced by social documentaries, although they are also deeply influenced by the fictional Rio, 40 Graus (which may itself be responsible for some tendencies of the social documentaries of the 1960s).
Nossa Escola de Samba, however, is closer to 1960s social documentaries. The key figure behind the film is Thomaz Farkas, a man who played a fundamental role in the development of Brazilian social documentaries and the history of Brazilian cinema. As a cinematographer, producer and director, the Hungarian-Brazilian filmmaker built an extensive filmography and was responsible for the anthology film Brasil Verdade (1968) - which cobbled together short films produced by him and was made thanks to his efforts to import equipment that could record direct sound. Up until then, most Brazilian films were dubbed in studios, and the new possibility of direct sound recording allowed for certain projects to change paradigms, among which documentaries evidently benefitted the most.
Nossa Escola de Samba is among the shorts selected to integrate Thomaz Farkas’ Brasil Verdade, and it relates to the other episodes of the anthology (Memória do Cangaço, Subterrâneos do Futebol and Viramundo) because all of the shorts discuss political, social and cultural aspects of Brazil at the time following the 1964 military coup. Originally shot on 16mm, the shorts were blown up to 35mm for the feature film.
There is little information regarding Manuel Horácio Gimenez, the Argentinian chosen by Farkas to direct Nossa Escola de Samba. His previous credits include co-writer or second unit director in Argentinian films such as Tiré Dié (1958), La primera fundación de Buenos Aires (1959) and Los Inundados (1962), all directed by Fernando Birri. Nossa Escola de Samba (and, by extension, Brasil Verdade) is seemingly his only significant contribution to Brazilian cinema. An Argentinian filmmaker heading a documentary about the Carnaval in Rio de Janeiro might seem like an unusual choice, but, even with the potential for Nossa Escola de Samba to result in something coldly seen from afar due to the geographical barrier, the final product is exactly the opposite. While the distant point of view may be there, it is not cold in the slightest: Gimenez wanders through the environment with free eyes and eager to understand the Carnaval universe, paying attention to details which a Brazilian filmmaker might ignore due to a relative familiarity with Carnaval.
The short film follows the year-long preparation for the Carnaval parade of the Grêmio Recreativo Escola de Samba Unidos de Vila Isabel, and is structured around interviews with Antônio Fernandes da Silveira, a.k.a. “China”, one of the founding members of that group (he also appears in the film, and his speech works as an off-screen narration throughout). Gimenez’s camera enters the daily lives of those living on the Pau da Bandeira hill, home to the members of Escola Vila Isabel, and it investigates the life of a certain social stratus in Brazil, taking that community as a microcosm and focusing on how their routines change while preparing for the carnaval. The Argentinian filmmaker summarizes this by saying "in the film, we get a glimpse of life in a favela and how it transforms as the Carnaval approaches. We follow Vila Isabel’s Carnaval parade in richness of detail, then the film ends with its members going back to their daily jobs once the party is over. The image and direct sound were able to capture the characters naturally in their daily environment, and with their authentic musical expression."5
“Florinda is our flag-bearer”, says “China”, off-screen, as we watch the first rehearsal, “she works in a cloth factory. And the other members are mostly bricklayers, electricians, cleaning women; there’s also a driver; and many are painters. Even Ana Lúcia - Suco’s youngest daughter - is thinking of finding a job. Suco is a mechanic, and he comes by every morning to call me so we can walk together to where we work.” In the first moments of the film, the images (showing the vivid rehearsal at the Municipal Theater) aligned with the sound (of the samba-enredo chosen by the Escola) present the contrast between professional life and daily life for those people, in a moment when their daily toil is suspended to give way for Carnaval work.
The popular celebration is made possible when a collective force, uniting every sector, comes together to reach a common goal (according to 'China', “once the rehearsals start, samba is like a microbe to us”). Preparation starts in October, six months prior to Carnaval, when rehearsing for the parade begins in the local sports court. However, the locals are never portrayed as amorphous or homogeneous. To exemplify the diversity of the organization, we can point to the scene where China explains that, “most of the members come from uphill [the favelas], because they’re more skilled, they’re more familiar with samba; Black people have got samba in their blood, it is theirs, but some white folk are a decent match”.
Gimenez takes an opportunity, amidst irresistible imagery of the collective aspects of the Carnaval rehearsals, to focus on little individual tender moments: while China names the professional activities of the people rehearsing, a shot of Suco’s daughter dancing and singing, followed by her father watching her with affection.
Such logic - of juxtaposing individual and collective aspects - is established organically, and the whole film is based on it; Gimenez wants to show us the daily lives of the dwellers of the Pau da Bandeira hill, instead of focusing exclusively on matters of the Carnaval. As we witness a morning in the favela, we are shown problems faced by those who live there, such as water shortage. But the film also takes its time to portray tender images of children eating at the table. Gimenez’s gaze, genuinely curious and affectionate, is closer to Nelson Pereira dos Santos’ Rio, 40 Graus, than, for instance, the later wave of favela movies made during and following the Retomada,6 with their “cosmetics of hunger”7, which saw the favelas as little more than a background for stylized exploitation films.
Even when the focus is, strictly speaking, on preparation for the Carnaval parade, Nossa Escola de Samba makes a point of following up the rehearsals with what happens after they are over: the workers relax, have a beer, smoke a cigarette, chat; street vendors walk around, couples date, neighbors gossip, the musicians stroll around in suits and starched shirts, and China explains the various fundraising fronts undertaken by the School to make its Carnaval financially viable.
Gimenez follows the preparations in a chronological manner: the first rehearsals, the trips to the Theatro Municipal to settle issues of a more bureaucratic nature, the construction of the floats in the sheds, the handmade molding of clay figures, the delegation of responsibilities, the preparation of the costumes by the seamstresses, and the painting of the scenery. The closer Carnaval is, the more China’s words are proven to be true, when he referred to the celebration as a "microbe" which infects everyone in the Pau da Bandeira hill. When the film announces that the parade is two months away, we hear drums beating, which the audience might mistake for that of a drum in the previous sequences which show the rehearsals in the sports court. However, it is soon revealed that the drum beating is completely spontaneous: in a courtyard between the houses, residents drum on tambourines or even on paint cans; they sing in chorus, in a circle in the center of which men, women, and children join in the dance. In a bar at the foot of the hill (which Gimenez explores in richness of detail), the song chosen by the people as their favorite is sung and rocked by triangles, beats on wood or matchboxes - which are traditional samba instruments. In a very natural and noteworthy shift, the song transitions to a choir of female voices, as we leave the bar and return to the general rehearsals.
Nearly as quintessential as the final parade is the moment that precedes it, as the dwellers of Pau da Bandeira hill conquer the asphalt and go to downtown Rio to join the street blocos8 with such enthusiasm that, in just a few minutes, they synthesize what is true and popular in the carnival of the blocos. The final parade, despite the different location and the costumes, differs little from the rehearsals: the mood is the same. This, for the film, allows us to understand that the rehearsals and the parade are equally important. Nossa Escola de Samba features a Carnaval from a different time, when parades were held in downtown Rio, for all to see: the Marquês de Sapucaí Sambodrome, their current location, was built decades later, in 1984. Once the parade is over, China says, noticeably proud, that Unidos de Vila Isabel School finished second in the second tier of the competition, “so now, we and the first place, leave the second tier. Now, we’re going to parade at Presidente Vargas Avenue.9 Next year we’ll be among the greatest: Mangueira, Portela…”.
After their triumph, Pau da Bandeira hill goes back to their daily lives, until next October. Gimenez shows us the following morning: China looks down at the city from his window. Off-screen people (the direct sound, made possible by the modern equipment imported by Thomaz Farkas, attentively records that favela’s soundscape) sing Zé Keti’s10 samba Opinião (“fale de mim quem quiser falar / aqui eu não pago aluguel / e se eu morrer amanhã, seu doutor / estou pertinho do céu”11). Somewhere in the distance, dogs bark. Boys in uniforms walk to school; the mother of Ana Lúcia (Suco’s daughter), highlighted in the first rehearsal, wakes her daughter up. Suco drinks coffee as he watches people go by. The people go on singing Opinião (“Podem me prender / podem me bater / podem até deixar-me sem comer / que eu não mudo de opinião / daqui do morro, eu não saio não”12). Men and women go downhill to work and earn their daily bread. The chorus of Opinião goes on, until the voices fade out. The sun goes up as another day begins. Pau da Bandeira hill is pure samba, even if Carnaval is over. Or maybe samba is pure Pau da Bandeira hill. The people are inseparable from their party, Carnaval, as they are the main component of the very DNA of Carnaval; without the people, it simply doesn’t happen. Nossa Escola de Samba is an underrated gem of Brazilian cinema and one of the definitive films on one of the greatest events on the planet.
1. Reference to a Caetano Veloso song. Meaning “always”.

2. Unfinished film partially shot in Mexico and Brazil by Orson Welles. An RKO production, It’s All True was canceled due to problems such as the accidental death of a fisherman who starred in one of the film’s episodes, and the interference of Getúlio Vargas’ administration via the Department of Press and Propaganda. The original negatives were seized by RKO and considered lost for decades, until part of them was found and edited into a 1993 documentary about the project also named It’s All True (Wilson, Krohn & Meisel, 1993).

3. See CABRAL, Sergio: Grande Otelo, uma biografia. São Paulo: Editora 34, 2007, p. 83-93.

4. See ROCHA, Glauber: Revisão Crítica do Cinema Brasileiro. SãoPaulo: Cosac & Naify, 2003.

5. From a quote attributed to Gimenez on a poster of the film. Digitally reproduced here: < thomazfarkas.com/filmes/nossa-escola-de-samba >.

6. “Retomada” refers to the period in the 1990s when, via grants and new culture incentive laws, Brazilian cinema resumed a steady production rhythm after years of scarcity caused by the dissolution of Embrafilme, the mixed funding state-owned film production and distribution company founded in 1969 by the military government in a partnership with Cinema Novo filmmakers, and dissolved in 1990. Carlota Joaquina, the Princess of Brazil (Carla Camurati, 1995) is regarded as the starting point of the Retomada era. “Post-Retomada” loosely refers to the 2000s, with significant landmarks such as Amarelo Manga (Cláudio Asssis, 2002) and Cidade Baixa (Sérgio Machado, 2005).

7. The term “cosmetics of hunger” was coined by researcher Ivana Bentes, as the antithesis to Glauber Rocha’s aesthetics of hunger, and popularized by critic Cleber Eduardo when he reviewed City of God (Fernando Meirelles e Kátia Lund, 2002) for Época Magazine.

8. Informal groups that dance and party in the streets during Carnaval.

9. The main street of downtown Rio de Janeiro.

10. José Flores de Jesus, better known as Zé Kéti, was among the most important samba composers in history. He was a member of Portela samba school. His songs were recorded by bossa nova singer Nara Leão, and they served as the basis for the 1964 theater play Opinião - one of the early landmarks of cultural opposition to the military dictatorship. An orchestral rendition of his song A Voz do Morro was the opening theme of Rio, 40 Graus (1955), directed by his friend Nelson Pereira dos Santos. He appeared in other Cinema Novo films such as Nelson Pereira dos Santos’ Boca de Ouro (1963) and Paulo Cézar Saraceni’s O Desafio (1965). After his death in 1999, Nelson Pereira dos Santos made a short film as a tribute to him, Meu Compadre Zé Keti (2000).

11. “Let they talk about me/ Here I pay no rent/ And if I die tomorrow, mister/ I’m so close to heaven already”

12. They can arrest me/ They can beat me up/ They can even starve me/ I won’t change my opinion/ I won’t leave the favela”
Em 1964, Paulo Gil Soares acabara de ser assistente de direção, cenógrafo, figurinista e co-autor dos diálogos em Deus e o Diabo na Terra do Sol, de Glauber Rocha, quando dirigiu seu primeiro filme: o documentário Memória do Cangaço, que viria a inaugurar a Caravana Farkas. Não por acaso, Memória toma uma postura ativa quanto a seu tema central, evitando tanto a demonização quanto a mistificação do fenômeno do cangaço, e fugindo ao estilo de documentário sociológico de então.
O filme abre com uma ambientação tipicamente nordestina; desde a música dos créditos iniciais às primeiras imagens, de um típico dia de feira na região. O narrador faz um resumo da história do cangaço, citando nomes de cangaceiros famosos e alguns mitos, como a ideia de que “roubavam dos ricos para dar aos pobres”. Partimos então à versão oficial dos fatos, na entrevista com o médico e professor Estácio de Lima. Estamos agora no “templo do saber” – com direito a colunas gregas – da Faculdade de Medicina da Bahia. Apesar da autoridade e do conhecimento anunciados, suas palavras compõem uma explicação tão absurda que beira a comédia involuntária. A origem do cangaço estaria, segundo ele, não apenas nas condições geográficas e na sociedade “primitiva”, mas principalmente na atividade de certas glândulas e no tipo físico esguio do sertanejo. Num documentário comum, o professor seria o narrador do filme – a “voz da razão” em off.  Mas não é o caso. Numa boa sacada da montagem, a explicação se dá enquanto vemos um sertanejo examinando os dentes de um cavalo. É um deboche sutil da lógica lombrosiana defendida pelo especialista.
É quando o narrador – que é o diretor do filme – se interpõe: “estará o professor Estácio de Lima com a razão?” Vamos aos fatos socioeconômicos da região: após uma entrevista com um vaqueiro que, além de magro, atravessou uma vida inteira de precariedade e injustiças (o que, segundo Lima, lhe tornaria propenso a entrar para o cangaço), o narrador nos enumera alguns dados que explicam que “o sertanejo é um homem abandonado à sua própria sorte”: ausência de justiça, analfabetismo, baixos salários… Motivos muito mais razoáveis para a violência em questão do que a teoria pseudocientífica citada pelo professor.

Há outro momento em que o narrador interfere para corrigir informações errôneas dos depoimentos colhidos. É durante a fala de José Rufino, quando este reconta o combate em que matou Corisco. Assim, sem desrespeitar seus entrevistados, o diretor se coloca primeiramente ao lado dos fatos. Não deixa, no entanto, de dar vazão à inventividade, sobretudo quando incorpora versos da poesia popular para apresentar e se despedir de Rufino, para falar de Maria Bonita e para mostrar o lado poeta do próprio Lampião.
Também são notórios os depoimentos de cinco sujeitos da história do cangaço. Além de José Rufino – conhecido matador de cangaceiros –, Benício Alves dos Santos, Ângelo Roque da Costa e Otília Maria de Jesus – os ex-cangaceiros Saracura, Labareda e Otília. Há também uma tentativa de entrevistar Sérgia Ribeiro – a ex-cangaceira Dadá –, que é vista brevemente, enxotando a equipe de sua casa. A todos os ex-cangaceiros são feitas as mesmas perguntas, entre as quais, os motivos que levaram cada um a entrar para o cangaço. Estes envolvem a vingança e a defesa da honra de familiares, no caso dos homens, e no caso das mulheres, o rapto por cangaceiros quando adolescentes, com risco de morte caso se recusassem a ir. Sobre isso, Dadá diz apenas: “Se acompanhei Corisco, é porque eu era mulher dele, obediente a meu marido.” A exceção foi Maria Bonita, que, como o filme mostra, abandonou o marido para acompanhar Lampião. Mais adiante, Rufino diz que era comum que seus homens houvessem se tornado policiais apenas para vingar a morte de parentes na mão dos cangaceiros.

Outro chamariz aqui são os excertos do documentário Lampião, o Rei do Cangaço (Alexandre Wulfes e Al Ghiu, 1959),1 o primeiro a disponibilizar as filmagens2 feitas por Benjamin Abrahão do bando de Lampião em 1936, que haviam sido confiscadas e não eram exibidas desde 1937. O trabalho resultante, no entanto, é marcado por profunda incompreensão acerca do cangaço, evidenciada pela narração sensacionalista e factualmente incorreta.
Já em Memória, com a participação dessas cinco testemunhas oculares, tem-se um relato honesto e sem rodeios da brutalidade daquela época, tanto por parte dos cangaceiros como dos soldados de polícia. A gravidade é perceptível inclusive pela recusa de Dadá em ser entrevistada. E Benício admite para a câmera que detesta falar daqueles tempos. Rivalidades, tiroteios, cabeças decepadas – sete das quais ainda estavam expostas no Instituto Médico Legal Nina Rodrigues, em Salvador, à época, e são mostradas bem de perto3 – nenhum assunto é evitado.

Temos ainda um punhado de informações sobre as vestimentas, os hábitos, a alimentação e a organização dos cangaceiros e das volantes. Marcas de ferimentos a bala de ambos os lados, histórias de trocas de tiro, e episódios inusitados, como os reiterados convites que Lampião fez a Rufino para se juntar aos cangaceiros. Rufino se justifica fazendo uma curiosa aproximação entre as duas forças inimigas: “Eu não queria [...] acompanhar cangaceiro, e nem queria ser soldado também.” É como se para ele o problema maior fosse “andar pegado em arma [...], derramando sangue”, independente de estar fora ou dentro da lei.

Embora não seja o primeiro documentário a tratar do cangaço – pois mesmo durante o período de atividade do bando de Lampião há registros de filmes documentais hoje considerados perdidos, como Lampião: o Banditismo no Nordeste (1927) e o semidocumental Lampião, a Fera do Nordeste (1930) –, Memória do Cangaço é possivelmente o primeiro a tratar do tema de forma ativamente crítica, pensante. Por tudo isso, é uma peça incontornável não só aos estudiosos do cangaço, mas também do cinema brasileiro.  
1. Algumas fontes citam que o filme saiu em 1955 ou em "meados dos anos 50". 1959 é o ano de lançamento, de acordo com Frederico Pernambucano de Mello em Benjamin Abrahão: entre anjos e cangaceiros (2020).

2.  Algumas das fotografias de Abrahão já haviam sido publicadas na imprensa desde 1936, mas o material original foi todo confiscado em 1937.

3. As cabeças foram retiradas do instituto e sepultadas no dia 6 de fevereiro de 1969.
The red and black of the Paraíba flag symbolize blood and mourning respectively. The word “nego” printed in white between the two colors refers to the supposed refusal of the oligarch politician João Pessoa to accept the scheme in which the elites of the Brazilian Southeast took turns in the presidency of the country, which is supposedly why he was assassinated.

Formerly Parahyba, the name of the state capital was replaced together with the flag at the time of the 1930 coup, when Getúlio Vargas came to power. João Pessoa was the vice-presidential candidate on Vargas' ticket, and his political clan organized a media event with the aim of making him a martyr, the victim of a politically motivated assassination, in order to legitimize the seizure of power by his lifelong ally, Getúlio Vargas. This version of the story is widely contested, as several sources point out that his death was more related to personal disputes than to any political ideal.

Almost a hundred years after the event, the city still bears its name and the flag honoring its greatness, which was built and also rejected by the majority of the people of Paraíba - noticeable, given the numerous plebiscite proposals that have already taken place in favor of changing the city's name, the last petition having taken place in November 2023. The Paraiban intellectual Ariano Suassuna, for example, refused to call the city João Pessoa.

It turns out that in the state of Paraíba there are real grassroots names that have been the target of violence and political persecution, but haven't made it onto the flag or even named a town. One of them is Margarida Maria Alves (1933-1983), one of the first women to chair a trade union in the country, the Rural Workers' Union of Alagoa Grande (PB).  During her lifetime, Margarida inspired multitudes and her legacy still echoes today in the struggle for rural workers' rights in Brazil. The exhibition Margarida Sempre Viva! - Três Filmes Sobre a Luta Camponesa (Three Films on the Peasant Struggle), organized by Cinelimite, ABPA and Casa Margarida Maria Alves, features a set of films shot on Super-8 in the 1980s that record her political activism and her legacy to the peasant struggle in Brazil. The new 2K digital copies of the films were made possible thanks to the Traveling Digitization project, which took place between October 2022 and February 2023 in six Brazilian cities (Brasília, Recife, João Pessoa, Teresina, Rio de Janeiro and São Paulo).

The digitalization of the films, directed by José Barbosa (1° de Maio and Closure of the First Trade Union Week in Brejo Paraibano) and Cláudio Barroso (Margarida, Sempre Viva) premiered on the 41st anniversary of Margarida's murder, and the exhibition allows the public to get in touch with the story of this great trade union leader who fought bravely against the oppression of the peasantry and also for the cause of women within this context. Showing these films in 2024 fosters numerous dialogues with the history of Brazilian cinema and its tradition of documentaries that portray the various labor struggles underway in the country.

One of the greatest works of Brazilian cinema, Cabra Marcado Para Morrer (1984), by director Eduardo Coutinho, also focuses on the history of the struggle for land in Paraíba. The documentary was initially intended to be a fictionalized reconstruction of the murder of João Pedro Teixeira, leader of the peasant league of Sapé (PB), which took place in 1962 on the orders of landowners. The film, however, was interrupted in 1964 by military repression following the coup d'état. The material was confiscated and destroyed by censors. The political activist for the peasant cause and widow of João Pedro Teixeira, Elizabeth Teixeira, was involved in the recordings as the protagonist of the story and was forced to disappear to escape from prison.

Almost two decades after the interruption, Coutinho resumes the project and seeks out Elizabeth Teixeira and other participants in the censored film. Cabra Marcado Para Morrer becomes a movie about the movie that never happened. Given the prominence that Coutinho's work has gained in the history of Brazilian documentary, it's hard not to consider the thematic parallels between Margarida, Sempre Viva! and Cabra Marcado. The two were released just a year apart and pay homage to the struggle of two rural women from the state of Paraíba. The filmmakers even shared ideas about the production, as director Cláudio Barroso said in an interview with Cinelimite.

During Margarida's tenure at the Alagoa Grande Rural Workers' Union, she filed more than 600 lawsuits against mill owners and landowners1 and was a leading voice in denouncing disrespect for labor laws and precarious working conditions in the sugarcane mills, which upset many powerful people in the region. Her memory is honored by the March of the Daisies, a demonstration of rural women workers that brings together activists from all over Brazil. The march takes place every four years in the country's capital, in favor of social rights, against hunger and against violence against rural and woodland women.

The fight for rural women's rights goes beyond rural trade unionists, and also encompasses traditional populations, such as riverine communities, coconut breakers, rubber tappers, among others, where the whole category of labour is closely linked to the land, regardless of whether it is used for planting and gathering or for plant extraction. Throughout Brazil, there are many tributes to Margarida, who also dedicated herself to popular education for rural people.

The social impetus behind the films included in the exhibition is related to the trajectory of both filmmakers in the activist movement. José Barbosa had his first job at SEDUP, the Popular Education Service, in the city of Guarabira, Paraíba, and Cláudio Barroso was involved in education for rural workers. José Barbosa's work at SEDUP involved producing materials for people who couldn't read,2 and therefore we can consider cinema as a “pedagogical method of social organization”, as said by the filmmaker in an interview with Cinelimite. The documentaries, according to the director, were shown on farms and in associations in various municipalities in the Brejo Paraibano region. Similarly, the filmmaker Cláudio Barroso also produced a film about the peasant struggle and the violence surrounding the militants.

Faced with a strong link between the police and public authorities in favor of impunity for crimes against activists in Brazil, journalistic and educational work plays an important role in strengthening the grassroots cause.

It is important to highlight the pioneering political-educational, union and grassroots aspect of Margarida's achievements during her lifetime, through her fight for the rights of rural women and the dissemination of Paulo Freire's ideas through the Center for Education and Culture of Rural Workers (CENTRU-PB). This impetus was also shared by Elizabeth Teixeira, who fought for the education of rural workers in a similar context, combining popular education and negotiation for better working conditions.

In 1972, during her testimony to the Parliamentary Commission of Inquiry into the Countryside, Elizabeth Teixeira declared:

“Doctor, even women, and today mothers and fathers, need to know how to organize. Organize families into groups, into nuclei. You also need to know how to talk to the landowners.  To say yes, if you win, to the whole nucleus. To say no if there's no gain. To look the armed thugs in the eye, then turn around and not look back, even if shots come.”

In her master's dissertation on Margarida Maria Alves, researcher Ana Paula Romão de Souza Ferreira wrote: “the need for agrarian reform meant going beyond mobilization, because other skills were needed, especially the ability to be a woman leader”.3 The researcher carries out an exercise in recollection with two interviewees who were Margarida's comrades-in-arms, and includes her own assessment to evaluate the legacy and inspiration that the trade unionist left to women involved in the struggle for agrarian reform. Her dissertation reflects the memory of the trade union leader as an inspiration for political militancy, capable of gathering crowds in her lifetime and influencing countless new generations.

I - 1° de Maio

The preparations for the May Day demonstrations depict manual labor involving silk-screening, part of the making of banners and T-shirts for the rural workers' protests. The manual labor recorded in the scenes parallels the staging that takes place during the union's speech, in which workers simulate working the land on top of a truck for the crowd, denouncing the violence with which the bosses treat their subordinates, a dynamic of servile exploitation that dates back to colonial Brazil. Struggle and work are brought closer together with manual labor. The workers then sing: “the life of a worker is the life of a sufferer”.
The footage takes place three months before Margarida's assassination. Her speech shows the confident and motivational way in which she addressed the workers, and a phrase uttered by the trade unionist was eternalized after her death, in many demonstrations and tributes: “it is better to die in the struggle than to die of hunger”. It wouldn't be fair to say that this was an isolated case in Margarida's life, because political activists in the countryside have always had to live with violent and cruel persecution of those who fight for labor rights. In both rural and urban contexts, political assassinations are part of the history of our country, which is currently at the top of the ranking of assassinations of political leaders in the world. Thanks to the union of public authorities with businessmen and landowners, heinous crimes like Margarida's murder go unpunished.

Most of the images recorded in the documentary about the events surrounding May 1st are during the daytime, and the strong light projected onto the group of peasants gathered to listen to the union leader's speeches is striking. The viewer is confronted with powerful images of the public staring at the camera without resignation, other people looking away, some children playing. The gesture of directly illuminating the crowd reinforces the documentary's theme of emphasizing the need to listen to the demands of these workers exploited by mill owners and landowners.
II - Primeira Semana Sindical no Brejo Paraibano

Once again, in the film Primeira Semana Sindical no Brejo Paraibano, we see an emphasis on making posters. The printing press technique is related to the popular art of woodcutting, which is very present in Paraiba culture. The images of these banners and the sayings on the T-shirts give voice to the crowds forming around the event. The images show vehicles full of peasants coming to witness the first union week.
The documentary's emphasis is on the collective. The narration of Margarida's voice and that of other union members is paired with images of the peasants gathered, adding to their expression in the protest demonstrations on the T-shirts and banners held up. Margarida's speech is filmed from below with the sky behind her, from the audience's point of view. Many people look at her with their arms crossed, while others applaud. Families show up with their children, revealing aspects about the daily life of that community, which, despite their silence during the trade unionist's speech, contribute to the discourse through the signs and sayings on their T-shirts.

III - Margarida, Sempre Viva!

Margarida, Sempre Viva!
is a film dedicated to rural women. The opening montage shows a profusion of black umbrellas on the occasion of the protest demanding justice for her death, juxtaposed with photographs of her funeral and a union speech given a few months before her death. The earth, the subject of the protests, appears in the image of a grave being covered, evoking "Morte e Vida Severina", a dramatic poem by João Cabral de Melo Neto, published in 1955.

“It's a good size, neither wide nor deep, it's the part that belongs to you on this estate.”

The film is not pessimistic and focuses on strengthening the rural trade union movement, but it is hard not to realize that the history of the struggle for agrarian reform has been repeated for centuries in Brazil. The film's editing points out the contradictions between the testimony of the members of the community where Margarida lived and the testimony of members of the judiciary when they refer to the crime. The mastermind of the crime, Aguinaldo Velloso Borges, a member of the so-called Várzea Group, an association of landowners and mill owners from the Paraiba political oligarchy, appears in the film, the same group associated with the assassination of João Pedro Teixeira. As a way of involving the subjects of the documentary in the creation of the film, they stage a recreation of the day Margarida was assassinated. In an animation, Margarida's emblematic photo, widely reproduced, is covered in red.
In the film's title cards, we see numerical data representing the pressure exerted by the union on the group of landowners, highlighting the conflict of interest between the two groups.
The interviews in the documentary are mostly female. The peasant women appear on camera with their children, suggesting the double day of domestic work faced by the group. Present in all three films, it is possible to see families with their children during union activities. The women interviewed talk about the wage gap between men and women, who earn less than their colleagues who no longer receive a fair wage. In the lines of the protest calling for justice, a trade unionist is heard:

“What the government is doing is covering the land with sugar cane to make alcohol to fill the tanks of cars and the people are starving and unemployed”
The final sequence intercuts a parallel montage between Margarida's speech to the workers at the first union week and an interview she gave posthumously, in which the union leader says she won't stop until she dies. Various women are shown in the countryside, and the insignia of her name is repeated until it takes up the entire screen.

The colors in the scenes that present the event of the protest against Margarida's murder have two colors, one is the crowd of black umbrellas and the other, the white shirts worn by those present, calling for peace in the countryside, a chromatic pair that symbolizes mourning and peace, the first that cannot be prosecuted and the second that cannot be achieved without justice. Recovering these films and remembering what happened to Margarida is essential if the impunity for the crime is not to be forgotten either.

Four decades after the release of the films, it is still extremely relevant to think about the memory of social movements through cinema. The workers of the state of Paraíba deserve the right to their history, to remember that it wasn't the ruling class that sacrificed itself for change in the face of hunger, unemployment and abandonment of the population. Paraíba's true popular leaders are not stamped on our flag or given city titles, but they will never die in the memory of the people, who will always clamor for fairer representation and their fundamental rights.
1. According to surveys made available by the Margarida Alves Foundation in support of the campaign “Margarida na memória”. Available at: https://www.fundacaomargaridaalves.org.br/campanha-margarida-na-memoria/

2.  Available at: https://www.youtube.com/watch?v=D6-Fvirvx9Y

3. FERREIRA, Ana Paula Romão de Souza. Margarida, Margaridas: memória de Margarida Maria Alves (1933-1983) e as práticas educativas das camponesas na Paraíba. 2017. Editora UFPB. p. 100. Disponível em: https://www.editora.ufpb.br/sistema/press5/index.php/UFPB/catalog/book/451
O vermelho e preto da bandeira da Paraíba simbolizam, respectivamente, sangue e luto. A palavra “nego” estampada em branco entre as duas cores remete à suposta recusa do político oligarca João Pessoa em aceitar o esquema no qual se revezavam na presidência do país as elites do Sudeste brasileiro, motivo pelo qual supostamente teria sido assassinado.

Antes Parahyba, o nome da capital do estado foi substituído junto com a bandeira à época do golpe de 1930, quando Getúlio Vargas ascendeu ao poder. João Pessoa era candidato à vice-presidência na chapa de Vargas, e seu clã político organizou um acontecimento midiático com o propósito de torná-lo um mártir, vítima de assassinato com motivação política, para legitimar a tomada de poder de seu aliado em vida, Getúlio Vargas. Essa versão da história é amplamente contestada, já que diversas fontes apontam que a sua morte se relaciona mais com disputas no âmbito pessoal do que qualquer razão relacionada a qualquer ideal político.

Quase cem anos depois do ocorrido, a cidade ainda carrega seu nome e a bandeira homenageia sua grandeza construída, e também rejeitada pela maior parte do povo paraibano – o que é perceptível dado as inúmeras propostas de plebiscito que já ocorreram em prol de uma mudança do nome da cidade, tendo acontecido a última petição em novembro de 2023. O intelectual paraibano Ariano Suassuna, por exemplo, se recusava a chamar a cidade de João Pessoa.

Acontece que no estado da Paraíba existem verdadeiros nomes populares que foram alvo de violência e perseguição política, mas não chegaram a estampar a bandeira, nem muito menos nomearam cidade alguma. Uma delas é Margarida Maria Alves (1933-1983), uma das primeiras mulheres a presidir um sindicato no país, o Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Alagoa Grande (PB). Em vida, Margarida inspirou multidões e até hoje o seu legado ecoa na luta por direitos do trabalhador rural no Brasil. A mostra Margarida Sempre Viva! - Três Filmes Sobre a Luta Camponesa, realizada pela Cinelimite, a ABPA e a Casa Margarida Maria Alves, traz um conjunto de filmes gravados em Super-8 na década de 80 que registram seu ativismo político e o seu legado para a luta campesina no Brasil. As novas cópias digitais em 2K dos filmes foram possíveis graças ao projeto Digitalização Viajante, que aconteceu entre outubro de 2022 e fevereiro de 2023 em seis cidades brasileiras (Brasília, Recife, João Pessoa, Teresina, Rio de Janeiro e São Paulo).

A digitalização dos filmes, dirigidos por José Barbosa (1° de Maio e Encerramento da Primeira Semana Sindical no Brejo Paraibano) e Cláudio Barroso (Margarida, Sempre Viva) estreou na data em que se completam 41 anos do assassinato de Margarida, e a mostra possibilta que o público entre em contato com a história dessa grande líder sindical que lutou bravamente contra a opressão do povo campesino e também pela causa da mulher nesse contexto. Exibir esses filmes em 2024 fomenta inúmeros diálogos com a história do cinema brasileiro e sua tradição de documentários que retratam as diversas lutas trabalhistas em curso no país.

Uma das maiores obras do cinema brasileiro, Cabra Marcado Para Morrer (1984), do diretor Eduardo Coutinho, também se debruça em torno da história de luta pela terra na Paraíba. O documentário inicialmente seria uma reconstituição ficcional do assassinato de João Pedro Teixeira, líder da liga camponesa de Sapé (PB), ocorrido em 1962 por ordem de latifundiários. O filme, porém, foi interrompido em 1964, pela ação da repressão militar, após o golpe de estado. O material é confiscado e destruído pela censura. A ativista política da causa camponesa e viúva de João Pedro Teixeira, Elizabeth Teixeira, estava envolvida nas gravações como protagonista da história e foi forçada a desaparecer para fugir da prisão.

Quase duas décadas após a interrupção, Coutinho retoma o projeto e procura Elizabeth Teixeira e outros participantes do filme censurado. Cabra Marcado Para Morrer vira um filme sobre o filme que nunca aconteceu. Dado o destaque que a obra de Coutinho ganhou na história do documentário brasileiro, é difícil não considerar o paralelo temático entre Margarida, Sempre Viva! e Cabra Marcado. Os dois foram lançados com apenas um ano de diferença, e homenageiam a luta de duas mulheres campesinas do estado da Paraíba. Os cineastas chegaram a compartilhar ideias sobre a produção, como relata em entrevista o diretor Cláudio Barroso com Cinelimite. A digitalização em 2K e consequente expansão da circulação dos curtas permite que expandir a percepção acerca da história do cinema nacional, ao considerar a produção fora do eixo Rio-São Paulo.

Durante a gestão de Margarida no Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Alagoa Grande, ela moveu mais de 600 ações contra usineiros e latifundiários1 e foi uma voz protagonista na denúncia ao desrespeito às leis trabalhistas e às condições precárias de trabalho nas usinas de cana-de-açúcar, o que incomodou muitos poderosos da região. Sua memória é honrada pela Marcha das Margaridas, uma manifestação de mulheres trabalhadoras rurais que reúne ativistas de todo o Brasil. A marcha acontece a cada quatro anos na capital do país, em prol de direitos sociais, contra a fome e contra a violência dirigida às mulheres do campo e da floresta.

A luta pelos direitos das mulheres do campo vai além das sindicalistas rurais, e também engloba populações tradicionais, como as ribeirinhas, quebradeiras de coco, borracheiras, entre outras, em que toda a categoria trabalho está intimamente ligada à terra, independentemente se a forma de utilização é a plantação e coleta ou a extração vegetal. Pelo Brasil afora, existem muitas homenagens a Margarida, que também se dedicou à educação popular para o povo do campo.

O ímpeto social dos filmes incluídos na mostra se relaciona com a trajetória de ambos os cineastas com a militância. José Barbosa teve seu primeiro emprego no SEDUP, o Serviço de Educação Popular, na cidade de Guarabira, na Paraíba, e Cláudio Barroso se envolveu com educação para trabalhadores rurais. O trabalho de José Barbosa na SEDUP envolvia a produção de materiais para pessoas que não sabiam ler,2 o cinema então pôde ser uma “artimanha pedagógica de organização social”, de acordo com o cineasta, em entrevista para a Cinelimite. Os documentários, segundo o diretor, foram exibidos em sítios, associações em vários municípios da região do Brejo Paraibano. Da mesma forma, o cineasta Cláudio Barroso, também produziu sobre a luta campesina e a violência em torno dos militantes.

Frente a uma forte articulação entre polícia e poder público em prol da impunidade aos crimes contra ativistas no Brasil, o trabalho jornalístico e educacional desempenha um papel importante em fortalecer a causa popular.

É importante ressaltar o aspecto do pioneirismo político-educativo sindical e popular dos feitos que Margarida foi capaz de alcançar em vida, por meio da luta pelos direitos das mulheres do campo e com a difusão das ideias de Paulo Freire, pelo Centro de Educação e Cultura do Trabalhador Rural / CENTRU-PB. Esse ímpeto também é comum a Elizabeth Teixeira, que lutava pela educação dos trabalhadores rurais, em um contexto semelhante, apesar das diferenças, combinando educação popular e negociação por melhores condições de trabalho.

Em 1972, durante o depoimento à Comissão Parlamentar de Inquérito do Campo, Elizabeth Teixeira declara: 

“Sr.  Doutor,  mesmo  mulher,  e  hoje  mãe  e  pai  de  família,  precisa  saber  organizar. Organizar as famílias, em grupos, em núcleos. Precisa  saber  falar,  também,  com  os  latifundiários.  Pra  dizer  sim,  se  tiver  ganho,  pra  todo o núcleo. Pra dizer não, se não houver ganho. Olhar nos olhos dos jagunços, depois virar e não olhar pra trás, mesmo que venha tiros.”

Em sua dissertação de mestrado sobre Margarida Maria Alves, a pesquisadora Ana Paula Romão de Souza Ferreira escreveu: “a necessidade de uma reforma agrária significava ir além do desencadeamento de mobilizações, pois se faziam necessárias outras habilidades, em especial a condição de ser liderança mulher”.3 A pesquisadora realiza um exercício de rememoração com duas entrevistadas companheiras de luta de Margarida, e se inclui para avaliar o legado e inspiração que a sindicalista deixou para mulheres envolvidas na luta pela reforma agrária, que reflete a memória da líder sindicalista como inspiração para a militância política, capaz de reunir multidões em vida e influenciar inúmeras novas gerações.

I - 1° de Maio

Os preparativos para as manifestações do Dia do Trabalhador retratam gestos manuais em torno da serigrafia, parte da confecção de faixas e camisetas destinadas aos protestos dos trabalhadores rurais. O esforço manual registrado nas cenas faz uma rima com a encenação que ocorre durante a fala pública do sindicato, na qual trabalhadores simulam o trabalho da terra em cima de uma caminhonete para a multidão, denunciando a violência com a qual os patrões tratam seus subordinados, uma dinâmica de exploração servil que remonta aos tempos do Brasil colônia. A luta e o trabalho se aproximam com o fazer manual, a partir dessa combinação. Em seguida, os trabalhadores cantam: “a vida de trabalhador é vida de sofredor”.
A filmagem ocorre três meses antes do assassinato de Margarida. Seu discurso  mostra a maneira segura e motivadora com a qual ela se dirige aos trabalhadores, e uma frase proferida pela sindicalista foi eternizada após sua morte, em muitas manifestações e homenagens: “é melhor morrer na luta do que morrer de fome”. Não seria justo dizer que é algo relacionado ao caso isolado da trajetória de Margarida, pois ativistas políticos do campo convivem, desde sempre, com a perseguição violenta e cruel aos que lutam por direitos trabalhistas. Tanto no contexto rural quanto urbano, os assassinatos políticos fazem parte da história do nosso país, que atualmente configura no topo do ranking de assassinatos a líderes políticos no mundo. Graças à união do poder público com empresários e proprietários de terra, crimes hediondos como assassinato de Margarida, permanecem impunes.

A maioria das imagens gravadas no documentário sobre os eventos que envolvem o dia 1° de maio são diurnas, e chama atenção a luz forte projetada no grupo de camponeses que se reúnem para escutar falas da liderança sindicalista. O espectador se vê deparado com imagens potentes do público que encara a câmera sem se resignar, outras pessoas mantém o olhar alheio, algumas crianças brincam. O gesto de iluminar diretamente o público reforça o assunto do documentário em enfatizar a necessidade de se dar ouvidos às reivindicações desses trabalhadores explorados por usineiros e proprietários de terra. 
II - Primeira Semana Sindical no Brejo Paraibano

Mais uma vez, no filme Primeira Semana Sindical no Brejo Paraibano, vemos uma ênfase no feitio de cartazes. A técnica da prensa se relaciona com a arte popular da xilogravura, bastante presente na cultura paraibana. As imagens dessas faixas e os dizeres nas camisetas dão voz à multidão que se forma em torno do evento. São apresentadas imagens em que se vê veículos cheios de camponeses que vem presenciar a primeira semana sindical. 
A ênfase do documentário é no coletivo. A narração da voz de Margarida e outros sindicalistas é combinada às imagens dos camponeses reunidos, somando-se sua expressão nas manifestações de protesto nas camisetas e faixas levantadas. Margarida aparece discursando sendo filmada de baixo para cima com o céu atrás de si, do ponto de vista do público. Muitos encaram as falas com o semblante sério de braços cruzados, enquanto outros aplaudem. As famílias comparecem com suas crianças, o que marca o cotidiano daquela comunidade, que, apesar do silêncio para escutar a fala dos sindicalista, também tem seu discurso somado à manifestação na câmera -- através das placas e dizeres nas camisetas.

III - Margarida, Sempre Viva!

Margarida, Sempre Viva!
é um filme dedicado às mulheres do campo. A montagem inicial mostra uma profusão de guarda-chuvas negros na ocasião do protesto reinvindcando justiça pela sua morte, justaposta com fotografias do seu enterro e uma fala sindical proferida poucos meses antes de sua morte. A terra, tema de reivindicação, aparece na imagem de uma cova sendo coberta, evocando "Morte e Vida Severina", poema dramático de João Cabral de Melo Neto, publicado em 1955.

“É de bom tamanho, nem largo nem fundo, é a parte que te cabe neste latifúndio.”

O filme não possui um discurso pessimista e se concentra no fortalecimento do movimento sindicalista rural, mas é difícil não encarar que a história da luta pela reforma agrária se repete há séculos no Brasil. A montagem do filme aponta as contradições entre o depoimento dos integrantes da comunidade onde Margarida morava, e os depoimentos de membros do judiciário quando se referem ao crime. Aparece no filme o mandante do crime, Aguinaldo Velloso Borges, integrante do chamado Grupo da Várzea, associação de latifundiários e usineiros da oligarquia política paraibana, mesmo grupo associado ao mandato do assassinato de João Pedro Teixeira. Como maneira de engajar os sujeitos do documentário na criação do filme, eles encenam uma recriação do dia do assassinato de Margarida. Em uma animação a foto emblemática de Margarida, reproduzida amplamente, é coberta de vermelho. 
Nos letreiros do filme, vemos dados numéricos que representam a pressão exercida pelo sindicato ao grupo de proprietários de terra, evidenciando o conflito de interesse dos dois grupos. 
As entrevistas do documentário são majoritariamente femininas. As mulheres camponesas aparecem em cena com seus filhos, sugerindo a dupla jornada do trabalho doméstico enfrentada pela categoria. Presente nos três filmes, é possível ver as famílias com suas crianças durante as atividades sindicais. As mulheres entrevistadas falam sobre a diferença salarial entre homens e mulheres, que ganham menos do que seus companheiros que já não recebem um salário justo. Nas falas do protesto clamando por justiça, ouve-se de um sindicalista:

“O que o governo está fazendo é cobrir a terra com cana para fabricar álcool para encher o tanque dos carros e o povo, morrendo de fome e desempregado”
A sequência final intercala uma montagem paralela entre a fala de Margarida aos trabalhadores na primeira semana sindical e em uma entrevista sua exibida postumamente, na qual a líder sindicalista diz que não vai parar até morrer. Diversas mulheres são mostradas no ambiente do campo, e a insígnia do seu nome é repetida até ocupar totalmente a tela. 

Os letreiros vão se enchendo de margaridas ao final do filme. Das falas sindicais no protesto, existe um mote que serve para o documentário “uma causa não pode se matar por balas”. As cores nas cenas que apresentam o evento do protesto ao assassinato de Margarida tem duas cores, uma é a da multidão de guarda-chuvas pretos e a outra, as camisas brancas que vestem os presentes, clamando por paz no campo, um par cromático que simboliza luto e paz, o primeiro que não pode ser processado e o segundo que não consegue ser atingido sem justiça. Recuperar esses filmes e lembrar do que aconteceu com Margarida é essencial para que a impunidade do crime também não seja esquecida.

Quatro décadas após o lançamento dos filmes, ainda é extremamente relevante pensar a memória dos movimentos sociais através do cinema. Os trabalhadores do Estado da Paraíba merecem o direito à sua história, a lembrar que não foi a classe dominante que se sacrificou por mudança na fome, desemprego e abandono da população. Os verdadeiros líderes populares paraibanos não estão estampados na nossa bandeira nem receberam título de cidade, mas nunca irão morrer na memória do povo, que sempre há de clamar por uma representação mais justa e por seus direitos fundamentais. 
1. De acordo com levantamentos disponibilizados pela Fundação Margarida Alves em prol da campanha “Margarida na memória”. Disponível em: https://www.fundacaomargarida
alves.org.br/campanha-margarida-na-memoria/

2.  Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=D6-Fvirvx9Y

3. FERREIRA, Ana Paula Romão de Souza. Margarida, Margaridas: memória de Margarida Maria Alves (1933-1983) e as práticas educativas das camponesas na Paraíba. 2017. Editora UFPB. p. 100. Disponível em: https://www.editora.ufpb.br/sistema
/press5/index.php/UFPB/catalog/
book/451
Paulo Gil Soares had just finished working as an assistant director, production designer and dialogue writer in Glauber Rocha’s Black God, White Devil, when he went on to direct his first film: the documentary Memória do Cangaço (Memory of the Cangaço), which would be the first film of the Caravana Farkas. It is not an accident that it took an active stance when confronting its main subject, while avoiding both demonizing and mystifying the cangaço, and distancing itself from the style of sociological documentaries at the time.
It opens in a typically Northeastern setting; from the music of the opening credits to its first images, of a typical market in the Northeast of Brazil. The narrator tells a summarized account of the history of the cangaço, citing some famous cangaceiros and some myths concerning them, such as the idea that “they stole from the rich to give to the poor”. We proceed to the official version of history, via an interview with professor and medical doctor Estácio de Lima. The setting now is the “temple of knowledge” of the Faculty of Medicine of Bahia - complete with Greek columns. Despite the authority and knowledge we were told to expect, the professor’s explanation sounds so absurd it borders on accidental comedy. According to him, the geographical conditions and the “primitive” society alone could not fully explain the origin of the cangaço. The main cause was the activity of certain glands and the body type of the slim sertanejos. If this were a common documentary of that time, the professor would serve as its narrator - the “voice of reason”. But it isn’t. In a clever editing move, his explanation is set to a local man examining the teeth of a horse. A subtle dismissal of the professor’s Lombrosian reasoning.
That’s when our narrator - the filmmaker himself - comes in: “Is professor Estácio de Lima right?” On we go to some socioeconomic data: after an interview with a cowhand who, besides being subjected to injustice and harsh conditions his whole life, was thin (which, according to Lima, would have led him to become a cangaceiro), the narrator lists data to explain that "the sertanejo is a man left to his own devices": facing the absence of justice, illiteracy, low wages... Much more reasonable reasons for the violence in question than the pseudoscientific theory cited by the professor.

There is another moment when the narrator comes in to correct wrong info given by his interviewees. It’s when José Rufino recounts the gunfight when he killed Corisco. For the director, facts come first. But there is room here for inventive filmmaking, especially when folk poetry (cordel) is used in Rufino’s intro and outro, to describe Maria Bonita, and to show that Lampião himself was a poet.
Worthy of note are the testimonies of five characters of the history of cangaço. Besides José Rufino - a famous cangaceiro killer -, there are Benício Alves dos Santos, Ângelo Roque da Costa and Otília Maria de Jesus - all former cangaceiros under the names, respectively, of Saracura, Labareda and Otília. We’re shown a brief attempt of interviewing Sérgia Ribeiro - the former cangaceira Dadá - who shuns the film crew from her home. All former cangaceiros are asked the same questions, especially why they joined the cangaço. Their reasons were, for the men, wanting to avenge and defend the honor of family members, and for the women, being kidnapped by cangaceiros in their teenage years, and threatened with death if they refused to go. On that, Dadá says: “I followed Corisco because I was his wife, I obeyed my husband.” The exception was Maria Bonita, who, we’re shown, left her husband for Lampião. At another moment, Rufino states it was common for police officers to have joined the force merely as a means to avenge relatives who had been killed by cangaceiros.

Another point of interest are the excerpts from the documentary Lampião, o Rei do Cangaço (Alexandre Wulfes and Al Ghiu, 1959),1 the first film to make use of the footage shot by Benjamin Abrahão of Lampião’s gang in 1936, which had been confiscated and was unseen since 1937. However, the resulting film failed to understand the phenomenon of the cangaço - which is evidenced by its sensationalist and inaccurate narration.
In Memória, on the other hand, those five eyewitnesses paint an honest and blunt portrait of the brutality of those times, both by the hands of cangaceiros and police officers. Such brutality can be perceived in how Dadá refuses to be interviewed. And Benício admits to the camera that he hates talking about those times. Rivalries, gunfights, severed heads - seven of which were still exposed at the Nina Rodrigues Forensic Institute of Salvador, Bahia, at the time, and which we get to see up close - the film doesn’t avoid any subjects.

Other than that, there is a handful of info regarding the clothing, habits, food and organization of cangaceiros and police forces. We see gunshot wounds suffered by people on each side, we hear stories of gunfights, and curious episodes, such as those when Lampião invited Rufino to join his group of cangaceiros. To explain his refusal, Rufino draws a curious parallel between both quarrelling factions: “I didn’t want to join the cangaceiros or the police.” It is as if, to him, the real issue was “carrying a gun, spilling blood”, regardless whether he was on the side of the law or not.

Even though it was not the first documentary about cangaço - there are records of now-lost films made during the years when Lampião’s group was active, such as Lampião: o Banditismo no Nordeste (1927) and the docufiction Lampião, a Fera do Nordeste (1930) -, Memória do Cangaço was probably the first film that took an actively critical stance when looking at that topic. For all that, it is obligatory in cangaço studies, as well as Brazilian cinema.
1. Some sources claim the film came out in 1955 or “in the 1950s”. According to Frederico Pernambucano de Mello in Benjamin Abrahão: entre anjos e cangaceiros (2020), the release year was 1959.

2.  Some of Abrahão’s photographs of the cangaceiros had been published as early as 1936, but all the negatives were confiscated in 1937.

3. The heads were taken from the Institute and properly buried on February 6, 1969.
It was a February day
A storm in the high sea
It was my mates and I
And death rounding up on us
On the beach there was a river of tears
Roses and prayer against the bad weather
Euê, euá
It was enchantment
In a chant for Yemanjá
- Sérgio Ricardo1
THE FILMMAKER
Juliana do Amor Perdido was shown hors concours at the 1970 Berlin Festival. It was shot between 1969 and 1972 on the seashores of the state of São Paulo, in Guarujá and Piracicaba2 The film was produced by both Entrefilmes and Vera Cruz, and it was distributed in Brazil by Metro Goldwyn Mayer. Juliana do Amor Perdido is a valuable work that has been far too ignored in the field of Brazilian film studies and among general audiences. This article will contextualize the production of Juliana do Amor Perdido, highlight the film’s poor initial critical reception and later redemption, underline the ways in which the military regime censors reacted to it, discuss Sérgio Ricardo’s own feelings about the film, and present some of the reasons as to why it deserves to be more recognized.

1969 was an emblematic year throughout the world. It was the year of the remarkable Woodstock festival, humans went to the moon, and the first message was sent via ARPANET - the precursor to the internet. In that same year, general Emilio Garrastazu Medici became president of Brazil in indirect elections. Brazil had been amidst a military dictatorship since 1964. Filmmaking was absolutely dangerous during this period. Depending on the censor’s interpretation, a film could be mutilated or banned entirely. This could then lead to the cast and crew becoming persecuted, exiled or even assassinated by the military regime.3

Sérgio Ricardo had originally planned to shoot A Noite do Espantalho (1974) in 1969, but production was postponed once the AI-5 was proclaimed in late 1968.The AI-5 (Institutional Act 5) meant the military coup was radicalizing.4 The AI-5 meant:
- All citizens had their political rights suspended for ten years.

- The military regime could freely intervene in states and municipalities.

- The National Congress, City Councils and State Legislative Assemblies could be forced into recess indefinitely by the President.

- The regime could remove the mandates of federal, state or municipal representatives.

- The right for citizens to vote and to be voted in union elections was suspended.

- Any activity or demonstrations of a political nature were forbidden.

- The guarantee of habeas corpus was suspended for political crimes.

- The press, theater, music and films would be increasingly censored.5
The producer of Juliana do Amor Perdido was Jorge Ileli, who had directed films such as Amei um Bicheiro (1952) and Mulheres e Milhões (1961). Sérgio Ricardo himself explains how their production strategy had to change due to the AI-5:
When the AI-5 came, he (Jorge Ileli) told me: Look, man… A Noite do Espantalho won’t be approved by the censors, and I’m not going to invest in a film that’s going to be banned. So, either you come up with a different, lighter story, or we give up on A Noite do Espantalho. (Ricardo, 2017)
It was after this conversation that Sérgio Ricardo had the idea to make Juliana do Amor Perdido. He would base the film on a story told to him by his uncle “about a train that, at the same time every evening, would whistle, and make everybody melancholic” (Ricardo, 2017). From that premise, Sérgio Ricardo teamed up with filmmaker and screenwriter Roberto Santos to develop a screenplay.

Once the screenplay was completed, Sérgio began the casting process. He ended up casting a newcomer, Maria do Rosário from Rio de Janeiro, as Juliana. He also casted Francisco di Franco as Faísca, Antonio Pitanga, Ítala Nandi and Macedo Neto. After financial resources were gathered, and the crew was ready to shoot, the production of Juliana do Amor Perdido began.

The story of Juliana do Amor Perdido centers on Juliana, who is the daughter of a man who leads an entire fishing community. This community lives on an island somewhere in Brazil. The first fifteen minutes of the film reveal the major elements and themes that will be articulated throughout it. Juliana appears as a mystical being. She has a mysterious connection to the sea, and her presence is seen as fundamental to the success of fishing and the commercialization of fish on the island. The opening scene of the film reveals a magical ritual that the community undergoes, which they believe will lead to their success when fishing. Juliana is at the center of this ritual, appearing as if she were a Yemanjá, a religious figure with totally syncretic elements between Afro-Brazilian religions, Christianity, and the experience of fishing. In this opening scene, Juliana is almost an apparition of the sea queen.

Once this ritual is over, the following scene presents a dialogue between Silva, Juliana’s father, and Mr. Moisés, who owns the island and is the middleman between the island fishermen and the fish market. In the scene, Silva complains to Moisés (who happens to have a foreign and possibly Jewish accent) that he truly believes in Juliana's holiness. Their conversation denotes that the presentation of Juliana as a Saint is a way for these businessmen to continually exploit the fishing community based on their willingness to believe whatever they are told. Aboard Mr. Moisés's boat, Silva says:

- People are complaining about the money, Mr. Moisés.

- Fishermen are stubborn. My situation is very bad, and the fisherman don’t understand it. You are a very intelligent man, and that’s why I trust you. You know, Silva… the island is my property. Some Americans want to buy it. If I sell it, the fishermen will lose their jobs, they’ll have to leave. I pity the fishermen. I get sick when I see them starving. And another thing, Silva: the purchasing power of the people is very low. No one’s eating fish in the city anymore. Only rich people eat fish. The people eat flour, in very bad quality. I’d lose my word of honor. I can’t raise your pay now. Don’t you agree, Silva?

- We have problems too, you know, Mr. Moisés? Fishermen like to work on their own.

- How old is your daughter, Silva?

- 21, Mr. Moisés.

- You have to think of the future, Silva.

- I can raise your wages, and yours alone. Be smart, don’t tell the other fishermen. Tell them about my situation. Then everything is settled.
Silva stares at his boss for a while, keeps silent, and puts his head down in agreement.

This dialogue is symbolic. The cunning way the boss leads the conversation with Silva portrays how exploitation and capitalism have the power to dictate an environment. The belief the fishermen had in the saintliness of Juliana is what maintains power structures and the status quo on the island. The above dialogue is intercut with reverse shots of Juliana blessing boats and fish with flowers. Through clever visual metaphors, the film deals with the reality of Brazil at the time. Such a strategy is widely used by artists in states of exception to deal with social issues directly or allegorically. As the story of Juliana do Amor Perdido continues on from this point, the theme of labor force exploitation is attenuated. The relationship between Juliana and her father, with the men of the island, and with a new lover, Faísca, becomes the center of the narrative.Juliana do Amor Perdido was received with little sympathy by film critics at the time of its initial release. Comparisons between Sérgio Ricardo's musical work and the film are recurrent. The film is also compared to Glauber Rocha's Barravento (1962), especially in the way that it criticizes religions as "…the opium of the masses…". The newspaper A Província do Pará, on December 16, 1970, states: "sincerely we find the film quite bad (...) what we see is a carnival-like ritual, exoticism meant for foreign eyes”. São Paulo’s Opereta da Tarde, in August 1970, also harshly criticizes the work: "…he, who is so good at singing stories, shouldn’t be so bad at telling them". Jornal da Bahia, in December 1970, is fonder of Juliana do Amor Perdido, writing, "…the film does not defend political theses, but instead it narrates with color, sounds and lyrical rhythms. It is love murdered in a society of lies, exploitation and incest…". Jornal da Bahia’s positive review of the film, saying that it does not have a strong political message, seems to misinterpret it or perhaps to try to apply a pro-military regime bias to it.It seems obvious that the critical consensus around Juliana do Amor Perdido had a considerable impact on the film’s commercial success when it was first released. However, Juliana do Amor Perdido has gained new appreciation over time, with recent texts highlighting its many praiseworthy aspects. However, one of the constant elements of the film which seem to have retained praise since it was first released is Dib Lutfi's photography and camera work.

THE SAINT
In Juliana do Amor Perdido, the island fishermen do not completely believe Juliana is a saint. This is reflected in the desirous way they look at her. Juliana's virginity is the supposed central element for her magical powers to operate, and she is able to defend herself from the men of the island because of this. Looking at her father, Juliana says, "I don't like the way the men look at me here”, him included. As such, incest is strongly suggested in the narrative.

Juliana's virginity/sanctity is simultaneously presented as the organizing element that maintains balance on the island, but it is also a factor of imbalance. Juliana’s deceased mother, played by Ítala Nandi, is characterized as a witch and prostitute who, through her infidelity, led Juliana's father and the fishing community to ruin. The Saint, Juliana, is the heir to all of this evil. When she falls in love with the train conductor, Faísca, the false balance of the fishing community begins to collapse once again. This patriarchal structure is present in the film's narrative. Women are oppressed by men and religion – two prisons whose only way out is death.  

Juliana's deceased mother only makes an appearance in a few scenes, but when she does, her presence is highly emblematic. The mother’s character personifies a magical woman, similar to the Western concept of a witch. The mother is presented as a mixed, magical being, a saint and a whore, who leads men astray. Juliana's encounter with her mother happens under a dreamlike aura. The mother appears on a rock with a gypsy card in her hand, the card representing death. The mother reveals the card and says: "You are going to be a saint, Juliana. My daughter will be a saint". The tension of this scene revolves around Juliana's holiness, which the mother reaffirms, and Juliana denies.
This scene is a reflection of the gender stereotypes that were persistent during the era that Juliana do Amor Perdido was produced (Ferro, 2010). Notably, the old idea that women use their powers for evil and to drag men into disgrace. Portrayals of the demonization of women were all too common during this period, and they reveal the larger tensions experienced by women during the military dictatorship. While perpetuating these stereotypes may not have necessarily been intended by the director, they reveal themselves to us now because we understand that this perception was a major part of that historical moment. According to Marco Ferro:
[Cinema] destroys the image of the double that each institution and each individual has managed to build for society. The camera reveals that image the way it really is, it says more about each person than they want to show. It unveils the secrets, it shows the opposite of society, its “lapses” (Ferro 2010, p. 31).
CENSORSHIP
The film advances into Juliana's relationship with Faísca. Faísca is the conductor of a train which passes near by the island on a daily basis. For Juliana, the train not only brings the possibility of romance, but also the possibility of escape, to leave the community which is oppressing her. Faísca, in love with Juliana, tries to help her get off the island. He invites her to run away on the train, and while Juliana first refuses, she later gives in.

On the train, Juliana’s supposed sanctity falls apart when she loses her virginity. Originally there was a sex scene in the film, but the censors cut it, leaving in only a few frames. As a result, the sex scene in Juliana do Amor Perdido is one of the strangest in Brazilian cinema. Initially, this scene portrayed oral sex from a man to a woman. This was something the censors did not approve of, even though there is a simulated marriage in the scene before it occurs. For the censors, films cannot portray or promote any form of sex before marriage.

This sex scene attracted attention from one of the censors responsible for analyzing the film, Sebastião Minas Brasil Coelho. Sebastião did not pay as much attention to the previously mentioned dialogue between Silva and Moisés. However, the second censor, C. Montebello, was more rigorous, even citing the dialogue between the boss and the fisherman in his report. The sex scene with the insinuation of oral sex from a man to a woman, during the dictatorship, represented female empowerment. These censors clearly felt that sexual freedom needed to be contained, as the sexual revolution was a danger to the system. The remaining shots left in the film after the censorship cuts are close ups of Juliana and Faísca and a final shot between piles of paper.

The following quotations present the opinions of censors Sebastião Minas Brasil Coelho and C. Montebello in their censorship reports. On June 9, 1970, Sebastião Minas Brasil Coelho issued:
To conclude, I must reiterate that it is a romantic film, full of lyricism and sensitivity, about a typical Brazilian theme, which is mysticism and religious sects of the country’s coastal areas. Its development is homogeneous, with inserts of opportune and intelligently placed flashbacks. There is a sex scene with Juliana and Faísca, in a poetic and non-erotic manner. I consider it inconvenient for minors to watch certain scenes. Therefore, I recommend it to be released for 18 and older.6
That concludes his report, but, after signing the document, Sebastião makes an observation in the body of the paper:
Considering that during the sex scene in the fourth part of the film there are shots of eroticism when Juliana is taken by Faísca, I suggest that shot be cut down to six frames in the moment Juliana appears in the foreground with erotic nuances. Considering that this film will represent Brazil in the International Berlin Festival, I think it should receive a special certificate for an uncut release. To be shown nationally, however, the cuts described above must be made.7
C. Montebello, the second censor, offers different opinions in his report issued on August 10th, 1970:
1a part - there is a dialogue between the leader of the fishermen and the “Jew” who owns the island where they live, in which said owner threatens to sell it to “the American” and says, “then you won’t have the right to fish”, and also that “fish is too expensive and only rich people can afford it”, that the people have little purchasing power and can only eat flour.

4a part – We totally agree with the previous censor, who thought the scene of the carnal conjunction should have this shot removed entirely or made shorter: when the young man, after kissing his lover, goes down alongside her body (then he disappears behind the boxes which were probably placed in the shot), and leaving only the shot when the young woman twists her body, at the mercy of the pleasure given to her by her lover (not in the shot), in an erotic practice which is not thought well of by the moral norms, which we could be considered aberrant, and therefore unfit to be shown in public.8

Conclusion: just to notify the dignified boss of SCDP, we reiterate that the film does not seem fit to be shown internationally, due to the fact that it centers on an isolated group of uncultured fishermen (for that reason they are exploited by the “Jew”) and subdued by the utterly primitive spiritualist cult of Yemanjá. It would send foreigners a demoralizing view of Brazilian reality, contrary to the efforts of our public administration to erase the negative image by which our country is known in other places.9
C. Montebello noticed and remarked upon the political tones of the dialogue between Mr. Moises and Silva, but was more emphatic to highlight the sex scene, about which he totally agreed with Sebastião Minas Brasil Coelho. As a result, the dialogue remained intact and the sex scene was cut to six frames. It is important to call attention to the fact that he recommends the film shouldn’t be shown internationally. This demonstrates that censors cared about how the military regime was being perceived by other countries.
Juliana do Amor Perdido is not a film about femininity. Rather, it is about a masculine world which has become disorganized by two women, Juliana and her mother. These women are portrayed as stereotypes - magical women who are dominated by the men around them and exploited for capital gain. At the end of the film, Traíra, a young fisherman, takes Silva’s place and Moisés proposes to raise his pay under the condition that he arranges for a new saint to be brought into the community. As they talk, they look at a young girl on the beach. Thus, the exploitation of that community is perpetuated. A new saint, like Juliana, will have her body become an object of order and disorder on the island.

The tragic end sequence shows Juliana on the tracks again, running barefoot and being chased by part of the island community. She sees Faísca’s train coming towards her. Behind her is the oppression of her old world, and in front of her is the train, which no longer represents love or escape, but an iron monster. Juliana meets her death between the two poles that would have led to further trauma in her life.

Juliana do Amor Perdido is not Sérgio Ricardo’s best film, but it is an important work in the history of Brazilian cinema. Juliana do Amor Perdido displays a visual beauty that stands out for its time, its precious soundtrack has songs written and sung by Sérgio Ricardo himself, and the film highlights themes that were important to deal with during an era of repression. There is something inside all of us that needs to be freed, a magic that needs to be tapped into and shared. This magic needs to be used for good, rather than serving as an instrument of domination. Perhaps the message of Juliana do Amor Perdido, one year after the AI-5, was that there is no solution in the individual. There is no escape from oppressive relations, unless we come together. Exile solves nothing.

“Juliana is the queen of the sea”.
-
Sérgio Ricardo
1. Part of the lyrics of the song “Juliana, Rainha do Mar”. Released on the LP Arrebentação in 1971. Lyrics, composition, and interpretation by Sérgio Ricardo.

2. Juliana do Amor Perdido received its commercial release in 1970, but the production and filming took place in 1969. This article will take 1969 as its production date.

3. If the military suspected that filmmakers were involved in any subversive activities, even if there was no reason to believe it, those filmmakers could have been persecuted.

4. When the military rose to power in 1964, their public discourse was generally mild. However, they were already persecuting, spying, censoring, arresting, exiling, and torturing their enemies from day one. The AI-5 meant the regime was tougher and more openly dictatorial.

5. Source: Presidência da República – Casa Civil.

6. Source: Memória da Censura no Cinema Brasileiro 1964-1988.

7. Ibid.

8. Source: Memória da Censura no Cinema Brasileiro 1964-1988.

9. Ibid.

REFERENCES

Ferro, M. Cinema e História. São Paulo: Paz e Terra, 2010.Hagemeyer, Rafel Rosa. SARAIVA, Daniel Lopes (orgs.) Esse Mundo é Meu: As artes de Sérgio Ricardo. Curitiba: April, 2018.

Nandi, I. Interview conducted in the project A Câmara Acústica de Sérgio Ricardo. Rio de Janeiro, July 23rd, 2017.

Ricardo, S. Interview conducted in the project A Câmara Acústica de Sérgio Ricardo. Rio de Janeiro, July 22nd, 2017.
Salvador: Anos 1950-1960

Apesar de todo o avanço metodológico na pesquisa histórica relacionada ao próprio campo, a história do cinema tende a se manter vinculada a alguns eixos, seja do ponto de vista temático ou espacial que ordenam e dão sentido às formas de ler e interpretar os processos históricos, e no caso do cinema brasileiro, não seria diferente. Mesmo com o questionamento de Jean Claude Bernardet nos anos 1990, parece que ainda acreditamos em mitos fundadores, estabelecendo relações de causalidade hierarquizante que algumas vezes não nos permitem elaborar novos caminhos e miradas na escrita da história do cinema brasileiro, transformando em “pontos cegos” objetos e temas os quais possam ter algum tipo de proximidade ou relação com aqueles considerados centrais pelos pesquisadores.

Dentre muitos exemplos possíveis, nos detemos aqui na produção cinematográfica realizada na Bahia durante as décadas de 1950 e 1960. Parte dela, tais como os filmes de Alexandre Robatto Filho, segue razoavelmente desconhecida  e outra, sobretudo aqueles filmes realizados entre 1959 e 1964, são compreendidos como uma rápida passagem para o Cinema Novo, especialmente considerando a centralidade de Glauber Rocha nesse cenário.

Este período é denominado “Ciclo baiano de cinema” - nomenclatura que ressalta a descontinuidade da produção cinematográfica brasileira, especialmente da que está fora do eixo Rio de Janeiro-São Paulo - ou também “Nova onda baiana”, que evidencia a aproximação dos novos cinemas que emergiram na mesma época, sobretudo na Europa. O movimento ocorreu em Salvador, capital da Bahia, inserindo a cidade em um contexto de intensa produção intelectual e artística, não apenas relacionada ao cinema, mas também às artes visuais, à literatura, à música, ao teatro e à estruturação da vida universitária, com o surgimento da Universidade da Bahia.
Nesse sentido, é fundamental ressaltar a criação do Clube de Cinema da Bahia (CCB), em 1950, tendo como principal figura o crítico de cinema e advogado Walter da Silveira, que se tornou seu programador. A existência do CCB potencializa a organização do campo cinematográfico baiano e, conforme aponta Veruska Silva, a partir deste momento houve em Salvador a...
...formação de uma sensibilidade para a reflexão e/ou para a participação das mudanças implementadas ou desejadas que tornaram esta experiência singular e marcante para tantas pessoas. Foi, ainda, no Clube de Cinema, que a possibilidade de tornar o cinema um meio de pensamento, expressão, criatividade e trabalho se transformou em uma opção real para muitos agentes da cidade de Salvador (2010, p. 48).
Entre 1959 e 1964, foram realizados 15 filmes que se lançaram em busca das características tidas como fundamentais da cultura e sociedade baianas.  É possível identificar neles o fluxo deste debate frequente nas ciências sociais e artes à época, reunindo assim os interesses não apenas dos cineastas, mas também de intelectuais, artistas visuais e literatos que se preocupavam de forma mais sistemática com as questões concernentes à formação cultural baiana.

Assim, encontramos neste período obras literárias como as de João Ubaldo Ribeiro, Adonias Filho, Sônia Coutinho, além de Jorge Amado (escrevendo desde os anos 1930), que se aproximavam do cotidiano das camadas populares através de personagens como pescadores, prostitutas, meninos de rua, estivadores, yalorixás, feirantes, sindicalistas, indígenas, negros, brancos e mestiços pobres. Por sua vez, Milton Santos, Thales de Azevedo e Vivaldo da Costa Lima desenvolveram, desde os anos 1950, pesquisas sobre a sociedade baiana, observando, entre outras questões, a complexidade das relações e hierarquias raciais e suas representações em um estado com uma população majoritariamente negra.

Já Mário Cravo Jr, Pierre Verger, Carybé e Rubem Valentim, por exemplo, dialogaram de diversas formas com a força estética das religiões afro-brasileiras, criando uma nova visualidade a partir desses novos referenciais, ressignificados nas artes visuais. Neste momento, houve ainda as incursões da arquiteta Lina Bo Bardi relacionadas ao Museu de Arte Popular da Bahia (MAP) e ao Museu de Arte Moderna da Bahia (MAM-BA), que também comungavam do mesmo interesse, como os nomes das instituições anunciam. É neste caldeirão cultural em plena ebulição por onde transitam cineastas, artistas e intelectuais da Bahia e diversas partes do Brasil, que encontramos Trigueirinho Neto e o seu Bahia de todos os santos (1961).

Bahia de todos os santos, Uma Bahia do Desencanto
Em 30 de junho de 1959, Paulo Emílio Sales Gomes escreve a Walter da Silveira uma carta de apresentação de Trigueirinho Neto, na qual fala rapidamente do interesse deste em filmar na Bahia, bem como da sua formação no Centro Experimental de Cinema de Roma. De acordo com Maria do Socorro Carvalho, Trigueirinho estava em Salvador desde fevereiro, trabalhando na produção do filme, mas sendo recebido com alguma desconfiança pelos realizadores baianos, que só foi revertida após a exibição bem-sucedida do seu curta metragem Nasce um mercado, na programação do CCB (2002, p. 100).

A partir deste momento, criou-se uma grande expectativa em torno da realização do filme entre novembro de 1959 e fevereiro de 1960, mobilizando, além da equipe envolvida, a atenção dos críticos e do campo cinematográfico baiano. A esta altura, Redenção (1959), Pátio (1959) e Um dia na rampa (1960) já haviam sido finalizados e exibidos.

Como uma espécie de preâmbulo, os créditos iniciais do filme aparecem sobre um mapa da Bahia no qual se destaca a Baía de Todos os Santos, acidente geográfico em torno do qual a cidade do Salvador e o Recôncavo Baiano se organizaram. Sendo uma das regiões de ocupação colonial mais antiga no território da cidade, ela é responsável até hoje pelas imagens que costumam identificar Salvador, com seu mar azul, o Elevador Lacerda, a rampa do Mercado Modelo, o casario do centro histórico e a população majoritariamente negra transitando pelos espaços. É também neste ambiente que transcorre parte significativa do filme.
Logo após o mapa, ainda nos créditos, vemos diversos saveiros atracados na rampa do Mercado Modelo e os trabalhadores carregando as mercadorias trazidas das cidades do recôncavo para as feiras. Embora seja um filme de ficção, estes dois minutos dedicados à rampa são, de certa forma, documentais, e dialogam diretamente com Um dia na rampa (1959), documentário de Luiz Paulino dos Santos que se dedica a acompanhar um dia dos trabalhadores no mesmo local.  E é exatamente neste ambiente de circulação intensa de mercadorias e pessoas que o protagonista, Tônio (Jurandir Pimentel), aparece pela primeira vez. Franzino, sem camisa e sentado sobre um barril, aparentemente alheio ao que acontece ao seu entorno, o personagem dá o tom da angústia e do relativo isolamento ao qual está sujeito pela sua condição racial e econômica. Em um dado momento, ele percebe a chegada de um homem bem vestido, com um terno claro e um relógio de bolso. Então, ele o segue e furta o relógio, findando o preâmbulo.
Daí por diante, acompanhamos Tônio na sua caminhada por um trecho do bairro do Comércio (em reforma) e um corte nos leva a uma praia não identificada, com bastante pedras, ondas fortes e um casebre de palha, onde ele encontra seus amigos, Pitanga (Antônio Sampaio), Manuel (Geraldo Del Rey), Matias (Eduardo Waddington), Neco (Francisco Contreiras) e Crispim (provavelmente Nelson Lana). É neste local onde eles se escondem da polícia, recebem e organizam produtos contrabandeados, e os resultados de pequenos furtos e trambiques.

É também ali que acontece a primeira conversa a respeito de temas que atravessam todo o filme: as dificuldades e limitações de viver em uma cidade empobrecida, com escassas possibilidades de emprego, geralmente vinculadas a algum tipo de apadrinhamento, e as ambiguidades em relação ao desejo de partir em direção ao sudeste, em busca de melhores condições de vida.
Pouco depois, estamos em uma outra região, distante do centro da cidade, entre dunas e coqueirais - uma imagem também recorrente nos filmes Entre o Mar e o Tendal (1953) e Xaréu (1954), de Alexandre Robatto Filho. Uma tropa da polícia montada dirige-se velozmente a uma comunidade pesqueira, que naquele momento realizava uma cerimônia religiosa do candomblé. Os policiais, sem descer dos cavalos, investem contra a população, destroem os pejís onde estavam assentados os símbolos dos orixás e incendeiam o barracão. Ameaçam de prisão a Mãe Sabina, yalorixá responsável pelo culto, além de obrigar as mulheres a carregarem o que restou das imagens e ferramentas dos orixás até o posto policial, em um cortejo lúgubre, com o qual Tônio cruza no meio do caminho.

Com a sua chegada, descobrimos que Mãe Sabina é sua avó materna, que sua mãe é uma mulher doente e que seu pai desapareceu; e que, embora Tônio tente alguma aproximação, ele é rechaçado pelas duas, como se não pertencesse àquele espaço. Aqui delineia-se o motivo da sua solidão – na sua condição de mestiço, é visto como branco demais para ser aceito como negro na comunidade em que vivem a avó e a mãe, e simultaneamente é negro demais para ser incorporado às escassas oportunidades da cidade. Sem pouso fixo, passa períodos na casa da mãe de Pitanga ou da Inglesa (Lola Brah) - estrangeira com quem tem um caso conturbado -, no quarto de Neco e Alice (Arassary de Oliveira) ou no esconderijo da praia. Embora os outros personagens tenham algum grau de parentesco, relacionamento ou apadrinhamento a quem recorrer, o principal espaço do filme é a rua.
Seja deambulando na praia ou pelas ruas do centro antigo, na região do Pelourinho, seja para os bares, acordos, desentendimentos ou fugas, é na rua onde tudo acontece na vida desse grupo. É preciso ressaltar, no entanto, que a cidade que vemos em Bahia de Todos os Santos é o avesso do cartão postal. É uma Salvador decadente, depauperada e opressiva, que massacra os pobres e trabalhadores - em sua maioria negros -, como é possível observar não apenas nos personagens principais, mas sobretudo nos figurantes, seja nos bailes, na luta sindical, na cadeia ou no reformatório.

Em uma das visitas à casa da mãe de Pitanga, há um diálogo sobre uma mobilização grevista no porto, na qual Pedro, irmão de Pitanga, está envolvido. Porém, ele é assassinado após matar um policial, e, ao tentar socorrê-lo, Pitanga precisa fugir da polícia. Tônio furta dinheiro da Inglesa para ajudar na fuga dos sindicalistas, que conseguem escapar do cerco policial à greve. Ao não aceitar o rompimento de Tônio, a estrangeira o denuncia à polícia, ocasionando sua prisão, que é mantida por um período, já que o rapaz se nega a delatar os fugitivos. É importante ressaltar que a perseguição ao terreiro de Mãe Sabina e a luta pela organização sindical dos trabalhadores do porto são indícios que apontam para a ambientação do filme durante o Estado Novo (1937-1945), localizando uma das cartelas iniciais que se refere temporalmente a “alguns anos atrás”.

Há neste momento do filme movimentações que atravessam o grupo e apontam para a sua dissolução. Embora, a princípio, todos se mostrem preocupados, apenas Manuel insiste em ajudar Tônio, embora não consiga fazê-lo sozinho. Neco e Alice vão para São Paulo, Crispim - relativamente estabelecido como artista plástico - vai estudar no Rio de Janeiro graças a uma indicação, Matias desaparece após ser pego por Neco na cama com Alice, e Manuel vai casar com a namorada grávida.  Por fim, quem retira Tônio da cadeia é sua avó, muito contrariada, sobretudo porque ela, já perseguida pela polícia por conta do terreiro de candomblé, teria que ao menos temporariamente se responsabilizar por ele, que termina o filme exatamente no lugar onde começou: na rampa do mercado, angustiado e sozinho olhando o horizonte.
Embora o argumento de Trigueirinho Neto desejasse uma perspectiva que se pretendia equilibrada, a considerar a presença de personagens brancos e negros, e beirando muitas vezes o discurso falacioso da ‘democracia racial’ nas suas falas públicas sobre o longa-metragem, a tensão racial e as desigualdades atravessam todo o filme e os destinos ali colocados, demolindo o posicionamento do próprio diretor. Enquanto Crispim, branco, afirma que “esse negócio de cor é besteira”, Tônio o interpela afirmando o contrário: “Se você fosse pra lá, arranjava logo trabalho. Comigo é diferente. Dizem que é tudo fácil, que tudo se arranja, que a cor não influi. Tudo da boca para fora. Nós é que sabemos.” E ao se referir à Inglesa, continua: “Ela gosta da minha cor. Desprezam, desprezam, mas quando é na cama a gente serve sempre. Toda branca diz que é para ajudar, para salvar. A Inglesa sempre me diz isso. Você não pode entender. Você é branco”.

Enquanto os brancos Crispim, Manuel e Neco conseguem divisar novos horizontes para organizar a vida futura, os negros permanecem sem possibilidades. A Pitanga restou a malograda fuga e a cadeia. A Tônio e sua avó, Mãe Sabina, a frequente ameaça de prisão, além das humilhações desumanizantes e racistas proferidas pelo chefe de polícia; ainda que Mãe Sabina tenha uma postura altiva, não é suficiente para fazer frente à agressão perpetrada. Nesta perspectiva, o filme “traí” o seu diretor, tanto por evidenciar exatamente o contrário da perspectiva pretendida, mostrando a impossibilidade, mesmo que ficcional, da igualdade entre negros e brancos em uma sociedade racista, quanto pela recusa da identificação dos baianos com o filme à época, algo que foi explicitado diretamente na sua primeira exibição pública.
“Frustração, piedade e revolta”: A Recepção de Bahia de Todos os Santos em Salvador

Conforme vimos acima, a desconfiança inicial em relação a Trigueirinho e suas intenções cinematográficas em Salvador foi revertida pela exibição do seu primeiro filme na programação do CCB, rendendo um acolhimento empolgado pelo campo cinematográfico, explicitado pelo artigo Para Trigueirinho Neto, um louvor, de autoria de Walter da Silveira e publicado no Diário de Notícias em setembro de 1960. Nele, o crítico faz uma breve retrospectiva sobre o cinema na Bahia, de modo a inserir a chegada de Trigueirinho no momento de efervescência e mobilização dos anos 1959/1960, citando a atuação de Roberto Pires, Luiz Paulino dos Santos, Glauber Rocha e o desejo de consolidação da produção cinematográfica com temas e questões locais, como seria o caso do Bahia de Todos os Santos, assim como Barravento (1962) - em produção naquele momento - e repudiando os filmes franceses e alemães que se utilizavam da cidade e de seu povo como cenário.

De tal modo, compreende-se a expectativa criada em torno do filme, reforçada, como sublinha Maria do Socorro Carvalho, pelas falas do diretor, que descrevia Bahia de Todos os Santos como “um filme sobre o povo, para o povo, contando a sua história de forma linear, com diálogos simples e utilizando a música popular” (2002, pg.100). Além da atenção da crítica especializada, nas proximidades do lançamento houve uma intensa cobertura da imprensa, criando um clima de interesse por este que aparentava ser um sucesso.

Entretanto, apesar de ter sido um grande evento, com a presença da crítica, elenco, políticos, além do público, o rechaço ao filme foi provavelmente proporcional ao tamanho da expectativa. Diferentemente do que imaginava Glauber Rocha, a rejeição veio sobretudo do público. Durante a estreia, este vaiou o longa-metragem, não se identificando como o povo para o qual Trigueirinho afirmava realizar o filme e nem com a cidade ali registrada em suas contradições.

No que tange a crítica, Walter da Silveira, no segundo artigo dedicado ao filme, intitulado Com sinceridade, para Trigueirinho Neto, também publicado no Diário de Notícias, na edição de 25 e 26 de setembro de 1960, foi o que primeiro demonstrou insatisfação em relação ao que foi visto, por conta dos problemas de ritmo, fragmentação, descontinuidade e a “falta do temperamento da Bahia”, além de apontar o que ele classificou como falta de “humildade artística” ou de “consciência artística” do diretor, ao menosprezar as críticas e segundo a perspectiva de Silveira, se utilizar erroneamente da ideia de vanguarda como defesa em relação a incompreensão do público.

Provavelmente esta postura mais enfática e dura tomada pelo crítico tem a ver com o seu lugar de decano no campo cinematográfico baiano, o que provavelmente fez os outros críticos mais jovens, tais como Orlando Senna e Hamilton Correia tomarem uma postura recuada e sem muito comprometimento, apesar do reconhecimento da polêmica em torno do filme.

Por sua vez, Glauber Rocha foi quem tomou a defesa mais direta do filme, escrevendo o artigo Defesa do filme, na edição de 02 e 03 de outubro de 1960 no Diário de Notícias, apropriando-se da gramática neo-realista para defender as escolhas de Trigueirinho Neto. Para Carvalho, a crítica de Glauber seria uma resposta ao posicionamento de Silveira, apontando as qualidades do filme, assim como sob uma outra perspectiva, o faz também Roberto Pires, aqui também sublinhando a importância da atuação de Antônio Luís Sampaio, que posteriormente, absorve o nome do seu personagem, transformando–se artisticamente em Antônio Pitanga (2020, p. 111).

Por fim, ao apontar o diálogo entre as imagens do Bahia de todos os santos e os já citados filmes de Luiz Paulino dos Santos e Alexandre Robatto, abrem-se  possibilidades para uma abordagem comparatista, que pode também aprofundar o diálogo do cinema com o imaginário relativo ao estado da Bahia, sobretudo no que diz respeito a Salvador, compartilhado com as artes visuais e a música. Isto nos ajuda a compreender a rejeição acachapante a que o  filme foi submetido no período do lançamento, mesmo propondo questões significativas em aproximação com o cinema moderno e os temas políticos e sociais. Durante os anos 1950 e 1960 houve um contexto de produção e reflexão artística, cultural e intelectual que, de formas singulares, deram “régua e compasso” para o reconhecimento das “coisas da Bahia” muito além das suas fronteiras, e nos parece que Bahia de todos os santos tem uma participação significativa nesse processo.

REFERÊNCIAS:

BERNARDET, Jean Claude. Historiografia Clássica do Cinema Brasileiro: metodologia e pedagogia. 1ªedição.São Paulo: Annablume, 1995.

CARVALHO, Maria do Socorro. A nova onda baiana: cinema na Bahia (1958-1962). Salvador: EDUFBA, 2002.

GUSMÃO, Milene de Cássia Silveira. Dinâmicas do cinema no Brasil e na Bahia: trajetórias e práticas do século XX ao XXI. Tese de Doutorado. Universidade Federal da Bahia, Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais: Salvador, 2007.

NOGUEIRA, Cyntia (org). Walter da Silveira e o cinema moderno no Brasil: críticas, artigos, cartas, documentos. Salvador: EDUFBA, 2020.

RUBINO, Silvana e GRINOVER, Marina (orgs). Lina por escrito. Textos escolhidos de Lina Bo Bardi. São Paulo: Cosac Naify,2009.

SETARO, André. Panorama do cinema baiano. 2ªedição. Salvador. EGBA.

SILVA, Veruska Anacirema da. Memória e cultura: cinema e aprendizado de cineclubistas baianos dos anos 1950. Dissertação de Mestrado. Programa de Pós Graduação em Memória: Linguagem e Sociedade. Universidade Estadual do Sudoeste: Vitória da Conquista, 2010.

STAM, Robert. Multiculturalismo tropical: uma história comparativa da raça na cultura e no cinema brasileiros. São Paulo: EDUSP, 2008.
Entre 1959 e 1964, foram realizados 15 filmes que se lançaram em busca das características tidas como fundamentais da cultura e sociedade baianas. É possível identificar neles o fluxo deste debate frequente nas ciências sociais e artes à época, reunindo assim os interesses não apenas dos cineastas, mas também de intelectuais, artistas visuais e literatos que se preocupavam de forma mais sistemática com as questões concernentes à formação cultural baiana.
Salvador: 1950s-1960s

Despite all the improvements in the methodology of historical research related to film history, it has become common for approaches to cling to certain biases, whether thematically or spatially, which shape the way historical processes are interpreted. With Brazilian cinema, this has been no different. Even though Jean Claude Bernardet questioned founding myths in the 1990s, we seem to still believe them. We continue to establish hierarchizing causality relations which may hinder us from developing new points of view when writing about the history of Brazilian film. As a result, objects and subjects which could be considered more central in the canon by researchers become “blindspots”.

There are many examples, but in this text we will focus on the filmography made in the state of Bahia during the 1950s and 1960s. Part of it, such as the films of Alexandre Robatto Filho, remains relatively unknown1, while other films, especially those made between 1959 and 1964, are considered nothing but a path to the Cinema Novo movement. This is mainly due to the presence of Glauber Rocha.

The period between 1959 and 1964 is referred to as “the Bahian cycle”, the name emphasizes the ephemeral nature of Brazilian film production, especially those works that were not produced in Rio de Janeiro and São Paulo. This period is also referred to as the “Bahian New Wave”, which stresses its connection to New Cinemas that were developing around that time, mainly in Europe. The Bahian cycle took place in Salvador, Bahia’s capital city, effectively inscribing it in a context of intense intellectual and artistic production, not only with respect to film, but also visual arts, literature, music, theater, and even the structure of daily college life, with the creation of the University of Bahia.
We should also stress the importance of the creation of the Clube de Cinema da Bahia (Bahia Film Club) in 1950, spearheaded by film critic and lawyer Walter da Silveira, who also became its programmer. The existence of this film club made it possible for the Bahian film scene to organize, and, according to Veruska Silva, from then on Salvador saw the...
...formation of a sensibility to reflection and/or participating in implemented or desired change, which made it a singular, memorable experience for so many people. It was also at the Clube de Cinema that the possibility of making film a vehicle for thought, expression, creativity and work became a concrete option for many cultural agents in Salvador (2010, p. 48).
Between 1959 and 1964, fifteen films were made in Bahia. In many ways, filmmakers were searching to present images on screen that were deemed fundamental to Bahian culture and society2. During this period, there was an ongoing debate about what these features precisely were in the fields of the social sciences and arts, reflecting how filmmakers, intellectuals, visual artists and writers systematically cared about issues related to Bahia’s cultural formation.
We can point to literary works during this time period such as those by João Ubaldo Ribeiro, Adonias Filho, Sônia Coutinho, in addition to Jorge Amado (who had been writing since the 1930s) which look closely at the daily lives of common folk via characters who were fishermen, prostitutes, street urchins, dock workers, yalorixás, market traders, union men, Native Brazilians, and poor black, white and mestizo people. In addition, since the 1950s, Milton Santos, Thales de Azevedo and Vivaldo da Costa Lima had been conducting research about Bahian society. They observed, among other issues, the complexity of racial relations and social hierarchies in a state with a predominantly black population.

Lastly, Mário Cravo Jr, Pierre Verger, Carybé and Rubem Valentim dealt with the aesthetic impact of Afro-Brazilian religions, creating a new visual identity based on these new references, re-signified in the visual arts. There were also the incursions of architect Lina Bo Bardi working on the Museu de Arte Popular da Bahia (Bahia Popular Art Museum) and the Museu de Arte Moderna da Bahia (Bahia Museum of Modern Art) which shared that interest, as hinted by their very names. It is within this cultural melting pot that we can locate filmmakers, artists, and intellectuals from Bahia and other parts of Brazil, and also Trigueirinho Neto and his film Bahia de todos os santos (1961).

Bahia de todos os santos, the Disenchantment of Bahia
On June 30, 1959 Paulo Emílio Salles Gomes wrote a letter of introduction for Trigueirinho Neto to Walter da Silveira, in which he briefly mentioned Trigueirinho’s interest in shooting a film in Bahia, as well as his formation in Rome’s Experimental Film Centre. According to Maria do Socorro Carvalho,  Trigueirinho was in Salvador since February, working on Bahia de todos os santos, but he was initially seen with suspicion by Bahian filmmakers (2002, page 100). However, this changed after the local filmmaking community had the opportunity to see his (now lost) short Nasce um mercado at the Bahia Film Club.

From then on, his upcoming film was met with high expectations. Between November 1959 and February 1960, the production caught the attention of film critics and the Bahian film scene. By then, Redenção (1959), Pátio (1959) and Um dia na rampa (1960) had already been completed and shown publicly.

In the guise of a preamble, the opening credits of Trigueirinho’s film are imposed on a map of Bahia highlighting the Bay of All Saints (Baía de Todos os Santos), a geographical accident around which Salvador and the Recôncavo Baiano region were settled. As it was one of the first regions to be occupied in colonial times, to this day the Bay accounts for the most common images used to identify Salvador - the blue sea, the Lacerda elevator, the ramp of the Mercado Modelo, the houses of the old downtown region and the mostly black population walking around. It is also where a significant portion of the film takes place.
Following the map, but still during the opening credits, we see many schooners tied to the shore at the ramp of Mercado Modelo and workers unloading the merchandise brought from towns all over the Recôncavo onto the street markets. This is a fictional film, but those two opening minutes are imbued with a documentary quality which directly relates Bahia de todos os santos to Luiz Paulino dos Santos’ documentary Um dia na rampa, a film about a day in the life of workers at that same location. That very environment, with intense circulation of goods and people, is where we first meet our protagonist Tônio (Jurandir Pimentel). Skinny, shirtless and sitting on a barrel, seemingly oblivious to the world around him, he conveys his anguish and relative isolation due to his racial and economic situation. Then, he notices the presence of a well-dressed man in a light suit and carrying a pocket watch. So, he follows the man and steals his watch, bringing an end to the preamble.
From then on, we follow Tônio as he walks through the Comércio neighborhood (which is undergoing a renovation) and a cut takes us to an unspecified beach where he meets his friends, Pitanga (Antônio Sampaio), Manuel (Geraldo Del Rey), Matias (Eduardo Waddington), Neco (Francisco Contreiras) and Crispim (probably Nelson Lana). It is on this beach that they hide from the police, receive and handle smuggled goods, and assess the outcomes of petty thefts. Sitting there on the sand, they discuss for the first time themes that are important throughout the film: the hardships and limitations of living in an impoverished city, the fact that job opportunities are often relegated to those with the right connections, and their desire to go down to Southwest Brazil in the hopes of finding better life conditions.
Not much later, far from downtown Salvador, we are amongst dunes and coconut trees, an image that is recurring in Alexandre Robatto Filho’s films Entre o Mar e o Tendal (1953) and Xaréu (1954). There, a mounted police troop swiftly rides to a fishing community, right when a Candomblé ceremony is taking place. The policemen, still on horseback, stampede toward the population, destroying the pejís where the symbols of the orixás were placed, set fire to the house, threaten to arrest the yalorixá, Mother Sabina, and force the women to carry what is left of the religious symbols to a police post, in a sort of funeral parade which goes by Tônio as he makes his way to the village.
With Tônio's arrival, we find out that Mother Sabina is his paternal grandmother, that his mother is sick, and that his father has abandoned them. Even though Tônio wants to get closer to both mothers, the two women shun him, as if he didn’t belong there. This is the reason for his isolation - being a mestizo, he is too white for his mother and grandmother, and too black for any scarce job opportunities the city has to offer. Lacking a permanent home, he spends his time at Pitanga’s mother's house, the apartment of an Englishwoman (a foreigner with whom he has a turbulent affair), in Neco and Alice’s (Arassary de Oliveira) room, or at the beach hideout.

Even though all the characters besides Tônio have family or acquaintances to turn to, the film mainly takes place on the streets. Whether they are strolling on the beach or on downtown streets, around the Pelourinho, going to bars, making agreements, fighting or running away - the streets are the stage of everything in the lives of these young men. But the city we see in Bahia de Todos os Santos is the opposite of the postcard image. It is a decadent, impoverished Salvador, oppressive to its working class, which consists mostly of poor black people - as exemplified not only by the main characters, but especially the extras who we see at parties, in union meetings, in jail, or in the reformatory.

In one of Tônio’s visits to Pitanga’s mother, there is a dialogue regarding a strike at the docks in which Pedro, Pitanga’s brother, is involved. Pedro is killed after shooting a police officer at the strike, and because Pitanga tries to help him fight the police, he now needs to go into hiding. Tônio steals some money from the Englishwoman to help in the escape of the union men, who successfully flee when the police forcibly end the strike. When Tônio breaks up with the Englishwoman, she turns him in to the police. He is arrested but refuses to tell on the fugitives. It is important to stress that the persecution of Mother Sabina’s Candomblé house and the dockworkers’ struggle to unionize are hints that the film takes place during the Estado Novo (1937-1945), as we see in the first scene that the film is set “a few years ago”.

At that point in the film, there are hints that the group of bandits is going to dissolve. Although at first everyone seems worried, only Manuel insists on helping Tônio. Neco and Alice go to São Paulo. Crispim, relatively established as a visual artist, goes to study in Rio de Janeiro after receiving a recommendation. Matias disappears after Neco catches him in bed with Alice, and Manuel is going to marry his pregnant girlfriend. Finally, Tônio is released after an intervention from his grandmother. She is upset that, on top of being harassed by the police due to the Candomblé house, she is going to have to serve as a guardian for Tônio, who ends up in the same place he started: the ramp of Mercado Modelo, in anguish and isolated, gazing at the horizon.
Although aiming for a balanced perspective - with the presence of both black and white characters, Trigueirinho’s screenplay and public declarations about the film border on the fallacy of “racial democracy”. Racial tension and inequality are key elements in the film and they impact the fates of each character, countering the filmmaker’s declarations. When Crispim, a white man, says “this talk of color is nonsense”, Tônio retorts “if you went there, you’d get a job in no time. With me it’d be a different story. They say everything is easy, everything will work out, skin color won’t get in the way. But that’s not true. Just ask us.” And, regarding the Englishwoman, “She likes my color. They despise and loathe us, but in bed we’re good enough. Every white woman says they do it to help us, to save us. The Englishwoman always tells me that. You wouldn’t understand. You’re white.”

While Crispim, Manuel, and Neco - all three white - are able to plan their futures, black characters are left without any possibilities. Pitanga has to run from the police. Tônio and Mother Sabina, his grandmother, are left with the constant threat of imprisonment and the frequent racist, dehumanizing humiliation at the hands of the police chief. Even though she refuses to bow down, that is not enough to counter the aggression. So, the film “betrays” its maker, as it stresses the opposite of his intended perspective by showing the impossibility, even in fiction, of equality between white and black people in a racist society, and also by the refusal of Bahians to identify with the film - which was made explicit at its first public showing.
“Frustration, mercy, and revolt”: The Reception of Bahia de Todos os Santos in Salvador

As stated before, the initial suspicion of Trigueirinho and his cinematographic intentions in Salvador was reversed when his first film was shown at the Bahia Film Club, which earned him a warm welcome by the film scene, as evident in the article Para Trigueirinho Neto, um louvor [In praise of Trigueirinho Neto], written by Walter da Silveira for the Diário de Notícias newspaper in September, 1960. In it, the critic offers a brief retrospective of Bahian cinema, in order to insert Trigueirinho’s arrival in the context of effervescence and mobilization of 1959/1960, citing Roberto Pires, Luiz Paulino dos Santos, Glauber Rocha and the desire to make films with local themes and issues, as would be the case with Bahia de todos os santos and Barravento (1962) - being produced at the time - and repudiating the French and German films which utilized the city and its people as mere background.

With that in mind, we can understand the expectations around Bahia de todos os santos, which, according to Maria do Socorro Carvalho, was reinforced by the filmmaker’s statements, describing it as “a film about the people, for the people, telling its story linearly, with simple dialogue and making use of popular music” (2002, page 100). In addition to the attention of film critics, around the time of release there was intense press coverage, which created a general interest for the film.

However, even though the premiere was a major event, with the presence of film critics, the cast, politicians and the general public, the rejection of the film was proportional to the expectations. Contrary to what Glauber Rocha had pictured in his praise of it, the dismissal came mainly from the audience. During the session, they booed the film, as they didn’t identify with what Trigueirinho claimed to be its target audience nor with the city portrayed in its contradictions.

As for the critics, Walter da Silveira, in his second article dedicated to the film, Com sinceridade, para Trigueirinho Neto [Sincerely, to Trigueirinho Neto], published in Diário de Notícias on September 25 and 26, 1960, was the first  to issue his disappointment with what he had seen. Silveira criticized the film’s rhythm, fragmentation, discontinuity and “lack of Bahian temperament”, as well as “lack of artistic humility” or “artistic conscience” by the filmmaker, as he underestimated the criticism he’d received and - in Silveira’s opinion - wrongfully used the idea of avant-garde to shield himself from the incomprehension of the audience. It’s probable that such a harsh stance was motivated by Silveira’s position as “dean” of the Bahian film scene, which may have caused younger critics, such as Orlando Senna and Hamilton Correia, to not take part in the controversy around the film, even though they recognized it as an important work.

Glauber Rocha, on the other hand, directly defended the film, in the article Defesa do filme [A defense of the film], published in Diário de Notícias on October 2 and 3, 1960, making use of Neorealist ideas to defend Trigueirinho’s choices. According to Carvalho (2020, p. 111), Glauber’s piece was a response to Silveira’s stance, stressing the qualities of the film, as did Roberto Pires from a different perspective, when he pointed out the importance of the acting of Antônio Luis Sampaio, who would later incorporate the name of his character into his stage name, Antônio Pitanga.

Lastly, as we look at the relationship between the images in Bahia de todos os santos and the aforementioned films by Luiz Paulino dos Santos and Alexandre Robatto, we are open to a comparative approach which might deepen the discourse of film with the mystic regarding the state of Bahia, especially when it comes to Salvador - which also involves visual arts and music. Then we can understand the overwhelming rejection to the film upon its release, despite the fact that it posed significant issues which were close to modern cinema, such as social and political matters. During the 1950s and 1960s, the context of artistic, cultural and intellectual production and reflection helped shape what we recognize as “aspects of Bahia” well beyond the state’s borders. And it seems to us Bahia de Todos os Santos played a key role in that process.
References:

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CARVALHO, Maria do Socorro. A nova onda baiana: cinema na Bahia (1958-1962). Salvador: EDUFBA, 2002.

GUSMÃO, Milene de Cássia Silveira. Dinâmicas do cinema no Brasil e na Bahia: trajetórias e práticas do século XX ao XXI. Tese de Doutorado. Universidade Federal da Bahia, Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais: Salvador, 2007.

NOGUEIRA, Cyntia (org). Walter da Silveira e o cinema moderno no Brasil: críticas, artigos, cartas, documentos. Salvador: EDUFBA, 2020.

RUBINO, Silvana e GRINOVER, Marina (orgs). Lina por escrito. Textos escolhidos de Lina Bo Bardi. São Paulo: Cosac Naify, 2009.

SETARO, André. Panorama do cinema baiano. 2ªedição. Salvador. EGBA.

SILVA, Veruska Anacirema da. Memória e cultura: cinema e aprendizado de cineclubistas baianos dos anos 1950. Dissertação de Mestrado. Programa de Pós Graduação em Memória: Linguagem e Sociedade. Universidade Estadual do Sudoeste: Vitória da Conquista, 2010.

STAM, Robert. Multiculturalismo tropical: uma história comparativa da raça na cultura e no cinema brasileiros. São Paulo: EDUSP, 2008.
“It's sweet to die at sea
in the green waves of the sea.”

- Dorival Caymmi

“The whole without the part is not whole,
The part without the whole is not a part,
But if the part makes it whole, being a part,
Let it not be said a part, being the whole.”

- Upon finding the arm taken from the statue of the Christ Child, Gregório de Matos

One can find in the films of the so-called Bahian Cycle of 1953 to 1962 a touch of poet Gregório de Matos , who sighs in his most famous verse: “Sad Bahia! O, how dissimilar.” It is not a matter of judging these works to be somber or comparing them with the baroque of Bahia’s seminal poet who waits for judgment day naked, sporting a wig, among piles of bananas in his office in Colonial Brazil. What Gregório de Matos' verses and the shots in the films of almost three centuries later have in common is that they share, hovering ghostly on the horizon, what the poet calls “the merchant machine”. For Gregório de Matos, the expression refers to the foreign ships that began to dock in Salvador, sowing the dissimilarity with their voracious commerce where there was once a tranquil stable state of the colonial economy, now transformed into a sad one in the gaze of the dethroned elite that Gregório de Matos is part of. At the beginning of the last century, the merchant machine was already embodied in a new form of navigation traced with astrolabes of lenses and compasses made of celluloid. After all, to write about the Bahian Cycle and its cinema of bricolage and absolutes means to look at the same and constant voluptuousness in which Brazil covers itself, discovers itself, and communes with its invisible and mutilated body from the exterior and its imported machines that make and unmake promises.

It is in the tension between interior and exterior that Alexandre Robatto Filho’s work is organized. In a gaze that oscillates pendulously between taking part in the capoeira dance of Vadiação (1954) and the proto-scientific distance with which he analyzes and sculpts the fishermen and their nets in Entre o Mar e o Tendal (1953). A dental surgeon by profession, but a filmmaker by vocation, he was the essential pioneer of Bahia's cinema, producing countless newsreels in the 1950s and finally arriving at a cinema on the border of documentary and poetry. Robatto saw himself as a tropical Robert Flaherty, but his cinema has something that Flaherty's has always eluded — a more profound sense of communion and discovery between human and nature, sea and fisherman, filmmaker and apparatus. A primordial sense that he shares with one of the fishermen of Entre o Mar e o Tendal, who approaches the camera with the fish still trembling in his hands and covering his face, so gigantic and alive as if it were the first fish on Earth. To write about Robatto is to write about a first look that films and simultaneously falls in love and invents cinema itself amidst wide shots of immobility and close-ups of laceration where the dichotomies of language seem annulled by a certain naivety.
Robatto was never a professional filmmaker in the modern sense. According to his family in the short documentary Os Filmes que Eu não Fiz (2013), that is why he retired from filmmaking. He was first and foremost an amateur in the original etymological sense of the word: someone who does it for love. His images are images of affection, always in permanent tension with the unveiling of the otherness hidden within himself, ready to elaborate the rupture between the interior and the exterior in the body that dances capoeira, in the fisherman who rows his raft carrying his xáreu fish to be fused with the sea, to expand his gaze beyond the relations between man and fishing net. His work represents the innocence and fervor of this Brazil that urges to know itself in the poles of the vastness and the invisible, a Brazil that can be seen in the paintings of Carybé (who served as the storyboard artist for Vadiação), which, like Robatto's camera, travel on the threshold of the abstraction of the body through light and time. A Brazil of the tender freedom of an encounter, insofar as it gives itself and is found in the freedom that, as in the guiding words of Jorge Amado in his novel Capitães da Areia, “...is like the Sun. It is the greatest good in the world.”

The hot sun on the ramp of the Modelo market in Salvador, with the boats coming and going, humming to the rhythm of the berimbau and Luiz Paulino dos Santos' suffocating montage in Um dia na Rampa (1960). A film where the eye is free in this alternation and simultaneity of bodies and spaces in the soul of the city that twists and turns between the old and the new, streetcars and boats on the sea which is their lifeline but is still the home of the sacred deity Iemanjá. All this is the naked and fertile Salvador, available to the generation of Luiz Paulino, Roberto Pires and Glauber Rocha, who, organized around film critic Walter Silveira, start producing films after being confronted with the expression of the effervescent Italian, Soviet and French cinemas of the 50s and 60s, trying to respond to the Hollywood monopoly of images. That generation, through the cinema, through the very merchant machine that touches and invades it, gets ignited to graffitti the walls of the city with the question: do you believe in cinema in Bahia?

What does it mean to believe in cinema in Bahia? To believe in cinema in Bahia, to believe in cinema in Brazil, is to believe that it is possible to undo the Brazilian gordian knot between interior and exterior, that it is possible to find a Brazilian image in the midst of the infinite alterities that shape a name without a country. It is to propose a reverse engineering of the merchant machine, to dream of an end to inequality through an impossible image in a land of fragmented blindness. Perhaps it was with this in mind that Roberto Pires worked for eight uninterrupted months with the negatives of The Robe (1953) (the first cinemascope film ever made) to develop a Brazilian version of the cinemascope which he called Igluscope, a name that doesn’t reflect the climate nor his flaming appetite for the body of cinema. His first feature, Redenção (1959), the first feature film made in Bahia and in Igluscope, is a film split between the foreign and the national, which does not want to dismember the established structures of cinema but to integrate Brazil and Bahia into it. It is impregnated with the intrigues and particularities of life in Bahia: its morose bourgeoisie who seek to make money in loitering, its sand and sea that fascinate Pires' camera and fill the widescreen but remain encoded in the narrow influences of the American film noir and its search for truth and redemption amidst the echoes of an absolute evil. Redenção is a singularly delicate alchemy between the monumental, feverish, and washed-out Igluscope and such a small and simple plot.

Pires would refine this mixture of film noir and Bahia in one of the most unique films of the period: Tocaia no Asfalto (1962). In it, the ills of Brazil mix with the ambiguities and cruelties of the noir genre to weave a plot in which a hired killer is immersed between the baroque of Salvador's churches and unfathomable salvation in the love of a prostitute. And a young politician, played by Geraldo Del Rey, makes his way through the labyrinths of a country he doesn't know, between shots of hired killers. Tocaia no Asfalto, even if it establishes Pires as one of the greatest image-makers in Brazilian cinema, remains intriguing for the same reason as the much more modest Redenção. These films share the same porous body, with holes like the one on the forehead of the murdered man in the anthological opening scene of Tocaia no Asfalto - a body that, in this collage between the regional and the foreign, finds itself in "the other" by noting its own absences and silences.
It is no coincidence that Glauber Rocha's first short film, made from leftover film stock from Redenção, deals precisely with two bodies that seek each other and move away, intersected by a chessboard soil, the fauna, the sky, the sea, and the breeze from the tropics. Pátio (1959) is a film of love. This is not only due to the presence of Glauber's first wife and the most iconic actress in the history of Brazilian cinema, Helena Ignez, but above all, due to the way the shots are chained together, hungry for one another, and how the camera moves, spellbound and sleepwalking, sometimes emulating the movement of waves. Pátio is already, like all of Glauber's filmography, set between hunger and trance in communion with the other and its becoming always overflowing in one of the most refined formal capacities in the history of cinema. Glauber would disregard this phase of his work later on because of its avant-garde ideas crossed by concretist influences, but his cinema never truly went far from that total poetry of cannibalism which merges and confuses bodies with the landscape, the human with the Earth, and Brazil with the fertile breast of filmmaking. It is mainly in Glauber Rocha's scenes, whether in the early compositions of Pátio - in the candomblé ceremonies of Barravento, or even much later in the Sun that never sets in The Age of the Earth - that Brazilian cinema finally finds its truest image: a fragmented vision, true crossroad of prayers and moans, apocalypses that devour the absolute, hidden in the merchant machine’s heart as gently as the sea of Bahia arrives on the coast bringing everlasting spells.

In the end, the whole Bahian Cycle is already in the first scene of Trigueirinho Neto's Bahia de Todos os Santos (1961), where Tônio (Jurandir Pimentel) observes and waits for the boats at the pier. The boats that die every night in the dark of the Atlantic and every morning invent that same ocean on their return. It is from the spirit of these boats and their observers that cinema was made in Bahia, and without this cinema, one could not speak of Cinema Novo or Brazilian cinema at all. Because Brazilian cinema is really a cinema of fragments, decentralized but where the parts always meet to compose a whole, to compose and merge a new Atlantic where interior and exterior, Bahia and foreign are at home. Where the merchant machine becomes a machine of the eternal and, between the waves and their images, one can no longer sigh to a sad Bahia.
“É doce morrer no mar
nas ondas verdes do mar.”

- Dorival Caymmi

“O todo sem a parte não é todo,
A parte sem o todo não é parte,
Mas se a parte o faz todo, sendo parte,
Não se diga, que é parte, sendo todo.”

- Ao Braço do Menino Jesus Quando Apareceu, Gregório de Matos

Há perpassando os filmes do chamado Ciclo Baiano de 1953 até 1962 um pouco do Gregório de Matos que suspira em seus versos mais famosos: “Triste Bahia! Ó quão dessemelhante.” Não se trata aqui de julgá-los macambúzios ou compará-los com o barroco do poeta baiano que espera o juízo final nu com sua cabeleira postiça entre as muitas bananas de seu escritório no Brasil Colônia. O que os versos de Gregório de Matos e os planos nos filmes de quase três séculos depois têm mesmo em comum é que eles compartilham pairando no horizonte fantasmagoricamente o que o poeta chama de “a máquina mercante”. Se para Gregório de Matos a expressão se refere aos navios estrangeiros que começavam a aportar constantemente em Salvador semeando a dessemelhança onde havia outrora um pacato Estado agora entristecido, no começo do século passado a máquina mercante já está corporificada em uma nova forma de navegação traçada com astrolábios de lentes e bússolas de celulóide. Afinal, tratar do Ciclo Baiano e seu cinema de bricolagens e absolutos é se debruçar sobre a mesma e constante volúpia na qual o Brasil se cobre, se descobre e comunga com seu corpo invisível e mutilado a partir do exterior e suas máquinas de fazer e desfazer promessas.

É na tensão entre interior e exterior que se organiza o olhar da câmera de Alexandre Robatto Filho. Um olhar que oscila de forma pendular entre a entrada na roda de capoeira de Vadiação e a distância proto-científica com a qual analisa e esculpe os pescadores e suas redes em Entre o Mar e o Tendal. Cirurgião-dentista de profissão, mas cineasta de vocação, é o pioneiro essencial do cinema baiano produzindo inúmeros cine-jornais nos anos 50 e chegando finalmente a um cinema na fronteira entre o documentário e a poesia. Robatto se imaginava enquanto um Robert Flaherty tropical, mas seu cinema tem algo que sempre escapou a Flaherty - um sentido mais profundo de comunhão e descoberta entre humano e natureza, mar e pescador, cineasta e aparato. Um sentido primordial que compartilha com um dos pescadores de Entre o Mar e o Tendal, que se aproxima totalmente da câmera com o peixe ainda tremendo em suas mãos tapando sua face, tão gigantesco e vivo como se aquele fosse realmente o primeiro peixe da Terra. Escrever acerca de Robatto é escrever sobre um olhar primeiro que filma na mesma medida em que se apaixona e inventa o próprio cinema em meio aos planos gerais de imobilidade e seus closes de dilaceramento onde as dicotomias da linguagem parecem anuladas por uma certa ingenuidade.
Robatto nunca foi um cineasta profissional como conhecemos hoje. Segundo sua família, no pequeno documentário Os Filmes que eu Não Fiz, ele se aposentou do cinema porque nunca poderia sê-lo. Era antes de tudo um amador no sentido etimológico original de alguém que faz por amor. Suas imagens são imagens de afeto, sempre em permanente tensão com o desvelamento do outro escondido em si, prestes a elaborar a ruptura entre o interior e o exterior no corpo da capoeira, no pescador que rema seu xáreu para se tornar mar para fundir o olhar para além das relações entre homem e rede. Sua obra representa a inocência e o fervor desse Brasil que urge conhecer a si mesmo entre os pólos da vastidão e do invisível, um Brasil que se vê nas pinturas de Carybé (que fez os storyboards de Vadiação), que, assim como a câmera de Robatto, trafegam no limiar da abstração do corpo por meio da luz e do tempo. Um Brasil da terna liberdade do encontro, na medida em que se dá e se acha nessa liberdade que, como nas palavras guias de Jorge Amado em Capitães da Areia, “é como o Sol. É o bem maior do mundo.”

O Sol quente quente na rampa do mercado Modelo de Salvador, com os barcos indo e vindo, zunindo no ritmo do berimbau e da montagem cortante e sufocante de Luiz Paulino dos Santos em Um dia na Rampa. Um filme onde o olho está livre nessa alternância e simultaneidade de corpos e espaços na alma da cidade que se contorce e se distorce entre o velho e o novo, os bondes e os barcos no mar, que traz dinheiro, mas também permanece sendo casa de Iemanjá. Tudo isso é a Salvador aberta, desnuda e fecunda para a juventude de Luiz Paulino, de Roberto Pires e de Glauber Rocha que se organiza na Bahia em torno do crítico de cinema Walter da Silveira e começará a produzir filmes após ser confrontada com a expressão dos cinemas italiano, soviético e francês, efervescentes nos anos 50 e 60, tentando responder ao monopólio hollywoodiano da imagem. Uma juventude que, através do cinema, da própria máquina mercante que lhe toca e lhe invade, se inflama a perguntar e pichar pela cidade: você acredita em cinema na Bahia?

O que significa então acreditar em cinema na Bahia?  Acreditar no cinema na Bahia, acreditar no cinema no Brasil é acreditar que é possível desfazer o nó górdio brasileiro entre interior e exterior, que é possível encontrar uma imagem brasileira em meio às infinitas alteridades que compõem um nome sem país. É propor uma engenharia reversa na máquina mercante, sonhar com o fim da dessemelhança através de uma imagem impossível numa terra de fragmentos cegos. Talvez tenha sido com isso em mente que Roberto Pires trabalhou durante oito meses ininterruptos com os negativos de O Manto Sagrado (The Robe, 1953) (o primeiro filme feito em cinemascope) para desenvolver uma versão brasileira do cinemascope que ele chamou de Igluscope - um nome que não reflete nem o clima baiano nem seu apetite flamejante pelo corpo do cinema. Seu primeiro longa, Redenção, é o primeiro longa feito na Bahia, e no tal Igluscope. É um filme sempre entre o estrangeiro e o nacional, que não quer desmembrar as estruturas construídas do cinema, mas integrar nelas Brasil e Bahia. Está impregnado das intrigas e particularidades da vida baiana: sua burguesia morosa que busca ganhar dinheiro na vadiagem, sua areia e mar que fascinam a câmera de Pires e preenchem a tela larga desde o primeiro plano, mas permanecem codificados nas estreitas influências do filme noir americano e sua busca de verdade e redenção (como o título já anuncia) em meio aos ecos de um mal absoluto. Redenção é uma alquimia singularmente delicada entre o Igluscope monumental, febril e lavado junto a uma trama tão pequena e simplória.

Pires refinaria essa mistura de noir e baiano num dos filmes mais singulares do período: Tocaia No Asfalto (1962). Nele, as mazelas do Brasil se mesclam às ambiguidades e crueldades do gênero para tecer uma trama em que o assassino contratado está imerso entre o barroco das igrejas de Salvador e a salvação insondável no amor de uma prostituta. E o jovem político de Geraldo del Rey serpenteia pelos labirintos de um país que não conhece e o esquece entre um tiro e outro. Tocaia no Asfalto, por mais que estabeleça Pires enquanto um dos maiores fazedores de imagens do cinema brasileiro, permanece intrigante pelo mesmo motivo do muito mais modesto Redenção. É um filme que compartilha do mesmo corpo poroso, esburacado como a testa do homem assassinado na primeira e antológica cena de Tocaia no Asfalto, um corpo que nessa colagem entre o regional e o estrangeiro se descobre a partir do outro nas ausências e silêncios de si mesmo.
Não é coincidência que o primeiro curta de Glauber Rocha, feito a partir de restos de película de Redenção, trate justamente de dois corpos que se buscam e se afastam entrecortados por um tabuleiro de xadrez, a fauna, o céu, o mar e a brisa dos trópicos. Pátio é um filme de amor, isso não se deve somente à presença da primeira esposa de Glauber, a atriz mais icônica da história do cinema brasileiro, Helena Ignez; mas sobretudo à maneira como os planos se encadeiam, famintos um pelo outro, ou como a câmera se move enfeitiçada e sonâmbula, emulando por vezes o movimento das ondas. Pátio já está, como toda a filmografia de Glauber, entre a fome e o transe na comunhão com o outro e seu devir transbordando sempre numa das mais apuradas capacidades formais da história do cinema. Se Glauber desconsiderou essa fase do seu trabalho mais tarde por conta dos ideais de vanguarda atravessados pelas influências concretistas, seu cinema nunca se distanciou verdadeiramente dessa poesia total do canibalismo que em sua carne funde e confunde os corpos à paisagem, o humano à Terra e o Brasil ao seio fértil do cinema. São principalmente nas cenas de Glauber Rocha, sejam nas prematuras composições de Pátio, nas cerimônias do candomblé de Barravento ou mesmo muito mais tarde no Sol que nunca se põe em Idade da Terra, que o cinema brasileiro encontra finalmente sua imagem mais verdadeira: imagens fragmentadas, verdadeiras encruzilhadas de preces e gemidos, apocalipses que devoram o absoluto oculto na máquina mercante tão suavemente como o mar da Bahia chega na costa trazendo peixes e feitiços.

No fim, todo o Ciclo Baiano está na primeira cena de Bahia de Todos os Santos de Trigueirinho Neto, na qual o Tônio de Jurandir Pimentel observa e aguarda os barcos no cais. Os barcos que toda noite morrem no escuro do Atlântico e toda manhã inventam esse mesmo oceano em seu retorno. É do espírito desses barcos e de seus observadores que se fez cinema na Bahia. Sem esse cinema não se poderia falar em Cinema Novo ou cinema brasileiro, porque este é mesmo um cinema de fragmentos, descentralizado, mas onde as partes sempre se encontram para compor um tudo, para compor e fundir um novo Atlântico onde cabe interior e exterior, baiano e estrangeiro, onde a máquina mercante se transforma em máquina do eterno e entre as ondas e suas imagens talvez já não se possa falar mais em triste Bahia.
“Ponta Porã – Mato Grosso – Brasil”.
This opening, after a brief prologue, takes us into a foreign land, far away from the urbanity Roberto Farias had accustomed us to in his most celebrated films, from Cidade Ameaçada (1960) to Assalto ao Trem Pagador (1962). In 1963, he set off with a film crew - and Hernâni Donato's novel in tow - to unveil a hidden country, unknown to the southeastern public at which the film was aimed. Over the course of the feature, we are plunged into a gray and ruined world of yerba mate, the remains of twisted trees and degraded epidermis, of men and women deteriorated by the heat and debt slavery in the Mato Grosso plantations dominated by the Companhia Mate Larangeira. This “cursed world of yerba mate” that "changes our way of life" is a territory cut off from everything, where the survival instinct almost always overrides any principle of morality, while the oppressive and flattened whiteness of the sky floods everything, shortens the horizon, and suffocates the gaze.

The story of the two changa-y Pablito (Reginado Farias) and Pytã (Jofre Soares), whose impetus is always to flee at any cost from the slaveholding company, in constant clash against the comitiveiros led by Casimiro (Maurício do Valle), and of Flora (Rejane Medeiros), the woman who fights with all her remaining strength to escape the fate of becoming an object in the hands of the men around her, is worked by a staging that combines Farias' dexterity with the industrial codes of genre cinema exercised since his days in Atlântida and a radical verve in line with the most hardened cinemanovistas of that time. If, as Fabián Núñez tells us, "there was never a radical rejection of [Roberto Farias] by the young cinemanovistas, despite, on the other hand, pointing out differences between them and Farias" (NUÑEZ, 2012, p. 78), it is also true that Roberto Farias is, for Cinema Novo, a "problem-figure" (ROCHA MELO, 2005), since it is neither possible to admit him unreservedly into the canon (his ties to commercial cinema are too enduring), nor to reject him entirely, as some of his works share similarities to the Cinema Novo films. One way or another, Selva Trágica (1964) is the apex of this unstable alignment: certainly Farias' most cinematically innovative film, the one in which the repertoire of forms associated with the Cinema Novo movement most clearly shows its face.
In fact, those who see Selva Trágica may be surprised (as I was at first sight) by the intensity of the long takes, by the vigorous handheld camera work, by the brutality of daily life in the grasslands, which are immediately reminiscent of the rediscovery of the interior of Brazil processed by the so-called "sertão trilogy" at exactly the same time. At first glance, it is surprising that this film does not belong to the best-known canon of the first phase of the movement, since there are so many affinities - of attitude and style - between Farias' Mato Grosso adventure and the contemporary ventures of Glauber Rocha, Nelson Pereira dos Santos, and Ruy Guerra in the Northeast.

There are plenty of reasons to defend the film's inclusion among the most radical films produced in Brazilian cinema at that time. There is no divide between José Rosa's photography in Selva Trágica and his work with Luiz Carlos Barreto in Vidas Secas (1963). In both, the work with natural light - especially with the blinding presence of an overly white sky - incorporates a suffocating illumination to the form. In the long take of a man carrying a huge load of yerba mate on his back, the cruelty of the camera is equivalent to the perversity of slave labor and there are obvious affinities with the moment in which Manoel tries to lift an enormous stone in Deus e o Diabo na Terra do Sol (1964), with the difference that in Farias' film it is a worker from the region who acts as an actor, making everything even more impressive. Maurício do Valle's complex construction and nuanced interpretation as the ambiguous executioner in Selva Trágica immediately brings to mind Glauber's character Antônio das Mortes. The final chase sequence - in which the handheld camera plunges into the forest in pursuit of the fugitives while the editing operates abrupt, modern cuts - makes one think of the brutal violence of the shootout in Os Fuzis (1964).
But despite the notable affinities, perhaps it is necessary to reconsider the interpretation of Glauber Rocha, which has become canonical (like a great part of the historical readings promoted by the Cinema Novo group), that sees Farias as a director torn between the artist and the craftsman, and think of this Mato Grosso film not as an island of radicalism on the eve of cooptation by the market, but as a clandestine bridge, a missing link between the possibilities of an industrial Brazilian-style cinema and the rupturist ambitions of Cinema Novo. For if there is the visceral realism of the long take in handheld camera, also present are the elegant, carefully composed - and never monotonous - close-ups that Farias knew so well from his days as a director of chanchadas. From his recent partnership with the great Alinor Azevedo in Cidade Ameaçada and Assalto, there remains this witty writing and a taste for social chronicle, with a fondness for lapidary phrases ("I am not white, black, or Indian: I am the color of yerba mate") that rise up, sudden, in the midst of the desert of incommunicability. If the camera is able to take a subjective look at a man who crawls in search of impossible freedom - only to spin around, unstable and free, at the moment of his fall -, it also allows itself to contemplate him, firm, at sunset, rifle in hand and with a vigilant gaze, like a Wild West hero, in the very opening shot of the film.
The instigating suggestion that there would not be a total rupture, but rather a set of surprising continuities between the cinema of Atlântida and Cinema Novo helps us to think about the place of Roberto Farias - and especially of Selva Trágica - in the history of Brazilian cinema. The vastness and clarity of the classic western are here suffocated by the bursting lights of a virulent sky, by the jagged trees of a sad scrubland, by the traces of the Guarani language on the soundtrack, by the animalistic laughter that erupts without warning, by the dance music that instead of appeasing the violence, intensifies it. The linear narration is constantly interrupted by free drifting, by a dry cut or a sudden slowness, only to resume its rhythmic intensity afterwards. More than an exception in the work of a director torn in half, perhaps it is possible to find in Selva Trágica the best expression of a cinema that sketched an improbable coexistence between communicability and invention, between formal intransigence and elegance, between sympathy for rupture and appreciation for fluidity.
References:

AMÂNCIO, Tunico & VIEIRA, João Luiz. “Por que Roberto?”. In: CHALUPE DA SILVA, Hadija & NETO, Simplício (org.). Os múltiplos lugares de Roberto Farias. Rio de Janeiro: Jurubeba Produções, 2012, p. 9-19.

NÚÑEZ, Fabián. “Roberto Farias em ritmo de Cinema Novo”. In: CHALUPE DA SILVA, Hadija & NETO, Simplício (org.). Os múltiplos lugares de Roberto Farias. Rio de Janeiro: Jurubeba Produções, 2012, p. 66-79.

ROCHA, Glauber. “O cinema novo e a aventura da criação 68”. In: Revolução do Cinema Novo. São Paulo: Cosac Naify, 2004, p. 127-150.

ROCHA MELO, Luís Alberto. “A chanchada segundo Glauber”. Revista Contracampo, 74, 2005. Disponível em: http://www.contracampo.com.br/
74/glauberchanchada.htm Acesso em 01/08/2022.
“Ponta Porã – Mato Grosso – Brasil”.
A indicação após um breve prólogo nos faz adentrar uma terra estrangeira, bem distante da urbanidade a que Roberto Farias nos acostumara em seus filmes mais celebrados, de Cidade Ameaçada (1960) a Assalto ao Trem Pagador (1962). Em 1963, ele partia com a equipe de filmagem – e o romance de Hernâni Donato a tiracolo – para descortinar um país oculto, desconhecido do público sudestino ao qual o filme se dirigia. No decorrer do longa, mergulhamos num mundo cinzento e arruinado de erva-mate, restos de árvores retorcidas e epidermes degradadas, de homens e mulheres deteriorados pelo calor e pela escravidão por dívida nos ervais mato-grossenses dominados pela Companhia Mate Larangeira. Esse “maldito mundo da erva” que “muda o jeito de se viver” é um território apartado de tudo, em que o instinto de sobrevivência se sobrepõe quase sempre a qualquer princípio de moralidade, enquanto a brancura opressiva e achatada do céu inunda tudo, encurta o horizonte, asfixia o olhar.

A história dos changa-y Pablito (Reginado Farias) e Pytã (Jofre Soares), cujo ímpeto é sempre o de fugir a qualquer custo dos domínios da Companhia escravista, em embate constante contra os comitiveiros liderados por Casimiro (Maurício do Valle), e de Flora (Rejane Medeiros), a mulher que luta com todas as forças que lhe restam para escapar da sina de se tornar objeto nas mãos dos homens ao redor, é trabalhada por uma encenação que combina a destreza de Farias com os códigos industriais do cinema de gênero exercitados desde seus tempos de Atlântida e uma verve radical alinhada com os cinemanovistas mais empedernidos daquele momento. Se, como nos diz Fabián Núñez, “jamais houve um rechaço radical a ele por parte dos jovens cinemanovistas, apesar de, por outro lado, assinalar diferenças entre eles e o cineasta friburguense” (NUÑEZ, 2012, p. 78), também é verdade que Roberto Farias é, para o Cinema Novo, uma “figura-problema” (ROCHA MELO, 2005), uma vez que não é possível nem admiti-lo sem reservas no cânone – seus laços com o cinema comercial são demasiado duradouros – nem rechaçá-lo inteiramente – alguns de seus filmes são demasiado familiares. De uma forma ou de outra, Selva Trágica (1964) é o ápice desse alinhamento instável: certamente o filme mais cinemanovista de Farias, aquele em que o repertório de formas associado ao movimento dá suas caras mais nitidamente.
Aliás, quem chega a Selva Trágica talvez se surpreenda (como eu me surpreendi à primeira vista) com a intensidade dos planos-sequência, com o vigoroso trabalho de câmera na mão, com a brutalidade do cotidiano nos ervais, que fazem lembrar imediatamente a redescoberta do interior do Brasil processada pela chamada “trilogia do sertão” exatamente na mesma época. Num primeiro impulso, é de se estranhar que este filme não pertença ao cânone mais conhecido da primeira fase do movimento, uma vez que há tantas afinidades – de atitude e de estilo – entre a aventura mato-grossense de Farias e as empreitadas contemporâneas de Glauber Rocha, Nelson Pereira dos Santos e Ruy Guerra no Nordeste.

Há motivos de sobra para defender a inclusão do filme entre o que de mais radical se produziu no cinema brasileiro daquele momento. Não há nenhum abismo entre a fotografia de José Rosa em Selva Trágica e seu trabalho em parceria com Luiz Carlos Barreto em Vidas Secas (1963). Em ambos, o trabalho com a luz natural – especialmente com a ofuscante presença de um céu demasiadamente branco – incorpora à forma uma iluminação sufocante, que deixa sua marca nos homens e nas mulheres. No plano-sequência de um homem carregando nas costas uma carga descomunal de erva-mate – a crueldade da câmera é equivalente à perversidade do trabalho escravo –, há afinidades evidentes com o momento em que Manoel tenta levantar uma pedra enorme em Deus e o Diabo na Terra do Sol (1964), com a diferença de que no filme de Farias é um trabalhador da região que faz as vezes de ator, o que deixa tudo ainda mais impressionante. A construção complexa e a intepretação nuançada de Maurício do Valle como o ambíguo algoz em Selva Trágica remete imediatamente ao Antônio das Mortes do filme de Glauber, e a sequência da perseguição final – em que a câmera na mão se embrenha na mata no encalço dos fujões enquanto a montagem opera cortes abruptos, moderníssimos – faz pensar na violência brutal do tiroteio de Os Fuzis (1964).
Mas, apesar das notáveis afinidades, talvez seja preciso reconsiderar a interpretação majoritária de Glauber Rocha – e que se tornou canônica, como grande parte das leituras históricas promovidas pelo grupo cinemanovista –, que enxerga Farias como um diretor cindido entre o artista e o artesão , e pensar o filme mato-grossense não como uma ilha de radicalidade às vésperas da cooptação pelo mercado, e sim como uma ponte clandestina, um elo perdido entre as possibilidades de um cinema industrial à brasileira e as ambições rupturistas do Cinema Novo. Pois se lá está o realismo visceral do plano-sequência em câmera na mão, também estão presentes os close-ups elegantes, cuidadosamente compostos – e nunca monótonos – que Farias conhecia tão bem desde os tempos em que era diretor de chanchadas. Da parceria recente com o grande Alinor Azevedo  em Cidade Ameaçada e Assalto, resta essa escrita arguta e o gosto pela crônica social, com um apreço por frases lapidares (“Não sou branco, nem preto, nem bugre: sou da cor da erva”) que se erguem, súbitas, em meio ao deserto de incomunicabilidade. Se a câmera é capaz de fazer uma subjetiva de um homem que rasteja em busca da liberdade impossível – para depois rodopiar ao rés-do-chão, instável e livre, no momento da queda –, ela também se permite contemplá-lo, firme, ao pôr-do-sol, espingarda na mão e olhar vigilante, como um herói de faroeste, logo no plano de abertura do filme.
A instigante sugestão de que não haveria uma ruptura total, e sim um conjunto de surpreendentes continuidades entre o cinema da Atlântida e o Cinema Novo  nos ajuda a pensar o lugar de Roberto Farias – e especialmente de Selva Trágica – na história do cinema brasileiro. A amplidão e a clareza do western clássico são aqui sufocadas pelas luzes estouradas de um céu virulento, pelas árvores irregulares de um matagal triste, pelos restos de guarani na banda sonora, pelas risadas animalescas que irrompem sem aviso, pela música de baile que ao invés de apaziguar a violência, a intensifica. A narração linear é constantemente interrompida pela deriva livre, pelo corte seco ou pela lentidão súbita, para em seguida retomar sua intensidade ritmada. Mais do que uma exceção na obra de um diretor partido ao meio, talvez seja possível encontrar em Selva Trágica a melhor expressão de um cinema que esboçou uma improvável convivência entre comunicabilidade e invenção, entre intransigência formal e elegância, entre a simpatia pela ruptura e o apreço pela fluidez.
REFERÊNCIAS:

AMÂNCIO, Tunico & VIEIRA, João Luiz. “Por que Roberto?”. In: CHALUPE DA SILVA, Hadija & NETO, Simplício (org.). Os múltiplos lugares de Roberto Farias. Rio de Janeiro: Jurubeba Produções, 2012, p. 9-19.

NÚÑEZ, Fabián. “Roberto Farias em ritmo de Cinema Novo”. In: CHALUPE DA SILVA, Hadija & NETO, Simplício (org.). Os múltiplos lugares de Roberto Farias. Rio de Janeiro: Jurubeba Produções, 2012, p. 66-79.

ROCHA, Glauber. “O cinema novo e a aventura da criação 68”. In: Revolução do Cinema Novo. São Paulo: Cosac Naify, 2004, p. 127-150.

ROCHA MELO, Luís Alberto. “A chanchada segundo Glauber”. Revista Contracampo, 74, 2005. Disponível em: http://www.contracampo.com.br
/74/glauberchanchada.htm Acesso em 01/08/2022.
My Name is Tonho (1969) was Ozualdo Candeias’s big follow up to his well-received debut The Margin (1967). The earlier movie announced a radical São Paulo cinema and is often treated as the starting point of the so-called Cinema Marginal movement. But the film can also be seen as a dirty city symphony that was closer in spirit to Mario Peixoto’s Limite (1931) than anything Cinema Novo was doing at the time. The self-conscious and Avant Garde tendencies of The Margin made it popular with critics. Tonho, despite its own radicalism, was perceived by critics as a confounding retreat into commercialism for Candeias.

Tonho began as a film commissioned by producers who wanted a Brazilian western, something closer in style to the Italian westerns that had become popular at local theatres during the time. Here lies Candeias’s paradox and is the reason why My Name is Tonho is in many ways a better introduction to his cinema than the artier The Margin. Candeias was a radical filmmaker, but one who felt comfortable among the more populist side of Brazilian film. He made his home at Boca do Lixo, the São Paulo district where most of the exploitation output in Brazil would be produced between the late 60s and 80s, sex comedies mostly, but also crime films, horror, melodrama and its share of westerns. Even in the late 80s when Boca had descended into porn, Candeias still made a point of remaining based there. The proximity with those movies, and often sharing some of the same talent, was important for what Candeias was after.
Much like Samuel Fuller, Ozualdo Candeias was often mistaken as a primitive filmmaker. Like the American master, Candeias learned early to do things his own way, he liked stories he could sink his teeth into but had little uses for standard dramatic structure (the plot description for Tonho makes it sound far more straightforward than it is) and he preferred an immediate style that reacted to characters and their milieu much more than a traditional aesthetic approach. Candeias was a gifted environmental filmmaker with a knack for making his locations count and describing specific subcultures. He was also completely uninterested in setting his movies in places other filmmakers were using. Candeias’s past as a truck driver has often been used as a source of mystification, an attempt to turn him into a mythic figure, a naive common man with a camera. It is true that he had a much more blue collar origin than the usual middle-upper class celebrated Brazilian filmmaker (true for a lot of people working at Boca do Lixo at the time), but Candeias actually studied film, his main professor Maximo Barro edited The Margin, and was a good technician who sometimes acted as a near one man film crew on his films. Candeias's style had much more to do with a need to arrive at a fair representation of Brazil’s violence and poverty than some sort of naive accident.
There is a long tradition of Brazilian westerns. The country’s first international success was Lima Barreto’s The Bandit (1953) and it started the cangaceiro movie tradition that remained a strong local industry for a long time. Barreto’s assistant Carlos Coimbra, for example, made a career out of making these types of films. Those movies usually were set around the cangaceiro years at the start of the 20th century and take place in the Northeast, while being made by Southeast filmmakers. Glauber Rocha’s breakthrough Black God, White Devil (1964) can be described as an answer to those movies (Rocha once dismissed the genre saying São Paulo filmmakers couldn’t get Bahia’s light right).

This tradition is a useful reference point to My Name is Tonho, since Candeias completely dismisses it. Brazilian westerns often work hard to create Brazilian myths out of recognizable genre beats. Candeias does the same, but he forges his own path that has only some resemblance to genre as we know it (Fordian mythmaking couldn’t be further from his interests). Tonho certainly has known genre motifs - a family massacre, a man after revenge, a gang that terrorizes the region, and it even ends with a duel payoff between the avenging hero and the violent bandit. However, almost nothing about how it plays follows expectations. Candeias approached Tonho not as a reconstructed American genre film, but as a countryside drama. In this, it is actually closer to a John Ford/Harry Carey silent western, imagining situations that were still recognizable to a local population instead of what the post war western would become, where familiarity with people and situations matter more than narrative motifs. Tonho replaces the American old west for São Paulo country life. Its main interests are life and rhythms of small towns and farms of the area. Sometimes a shootout or a fistfight will break out, but it is telling that so much of it concerns people simply riding horses.
It is exemplary how much the cast of Tonho fit their surroundings. Candeias is great with faces, often filming them in closeup while desperately laughing. He is even better at giving actors things to do that make sure they are physically immersed in their character’s realities. The action scenes are often clever - the final duel is set so Tonho is riding an always moving horse and the dangerous Manelão is stuck at the center that the action axis keeps returning to. This provides a reverse of expectations as the hero has an upper hand, but also plays up the narrative logic until this point, as Tonho had been the one driving towards Manelão throughout the film. The violent camera movements, tight action and often offbeat editing suggest some of Rocha’s approach in his couple of Cangaço movies.
Indeed, the two 1969 Brazilian movies that My Name is Tonho brings most to mind are Rogerio Sganzerla’s The Woman of Everyone and Rocha’s Antonio das Mortes. Like Sganzerla’s film, it is a follow up to a successful debut that embraces a popular genre (sex comedy) and that uses its familiarity as a letter of intent while aggressively deconstructing its patterns and pushing them towards an apocalyptical end (it might be worth pointing out that Tonho cinematographer Peter Overback shot Sganzela’s debut The Red Light Bandit).
Antonio das Mortes and My Name is Tonho could not look further apart. Rocha's sequel is an epic in color made with international money. Similar to Tonho, it is a popular movie by a “difficult” filmmaker on specific radical terms, but the surface is much more mainstream with great colors and panoramic choreographed action. Both films are clear discourses on violence as it dominates the Brazilian backwoods and how they also sustain a political status quo. Tonho has a more direct address and Candeias remains closer to the action. There are plenty of similarities between Rocha and Candeias, but the latter inhabits hunger in a more direct manner. The protagonists Antonio and Tonho are outsider gunfighters who end up set against local forces, but their tragic non-belonging comes from opposite directions. Antonio is a stand-in for the left leaning middle class intellectual with their split class loyalties, Tonho is driven by retribution and extinguishes as soon as he realizes it. He suggests everyday violence instead of the many forces that organize it.
The wonderful choreographed final scene with Tonho getting back on his horse and leaving town for good, everything unchanged, is made remarkable by the sudden shift of focus that explains Candeias's preoccupations going from the gunfighter figure to the sister he leaves behind. She belongs to the land, to its violence as it will continue to be enacted time and again. It is to that world that Candeias pledges his loyalties that he will remain committed to find new ways to represent through the next quarter of century.
The Inheritance (1970) is a black and white film, fundamentally composed of close-ups and guitar chords. By way of a farcical western, Ozualdo Candeias turns Hamlet into a parable, takes Shakespeare for his ambition to achieve a tragic universality that encompasses the level of his experimentalism, a counterpoint to his radical specificity. Hamlet is adapted as a narrative premise to the vernacular invention that runs through the creation of any image that is under the realm of its director.

David Cardoso, a variably Shakespearean actor, is the Hamlet that takes up much of the screen time. Starring in a film with no recorded dialogue, with text that cuts through the images as part of their flow of movement, the dramaturgy of Cardoso's performance and that of his fellow actors is conceived exclusively as expression. This causes some important things to happen: First, there is a redoubling of the weight of each face that enters the frame. Second, the order of their expressions becomes an embodiment of the environment where the film is set, that is, it deepens the significance of the location in a gesture that goes beyond the geographical dispersion continuously proposed by Candeias throughout his career. Candeias' choice to film places never touched by the interest of previous filmmakers always ends up as a formal proposition, as a treatment of the location that seeks the camera as an engine of invention integrated to actors that enable the material influences of the land where it is filmed.
In this, it is worth thinking how this countryside space reinvents itself, not by receiving the Shakespearean narrative that gives it a staged dramaticity, but by the position of a camera that accelerates it. Against the typical bucolicism, the animals, the farm, and the woods are intercut by a fleeting descent of the lens through its social configuration. The countryside is perceived as this isolated space where power is concentrated, where the landowner who kills his brother to marry his sister-in-law faces the insanity of his nephew in revolt, where the death drive establishes the boundaries between properties and radicalizes the passage of time.
The crossfire of these filmic movements finds a semantic settlement in the textual floor that at points levels the frame. One must realize that the function of the written word in The Inheritance is not to replace the recording of the dialogues. Most of the time the text on screen is rightly playing an ambiguous role between reality and the unconscious, since it is never accompanied by the movement of the actors' mouths. When the characters decide to open their mouths, they are accompanied by animal sounds, gun shots, or the notes of a guitar that hardly ever leave the frame. For the actors, the text runs on a contravening plane. If these words cannot be explained as being spoken, thought, or narrated, it becomes clear that the effect they impose is in a much more divergent sense than explanatory, like a shock of dematerialization that textual semantics offers to tactile images.
This on-screen text forces us to think about silent cinema, which is fair to a degree, but it seems to be more present in certain framing decisions than in the central experimentation with the text that replaces the voice. A prime example that can exemplify this relationship of Candeias' framing to old cinematic machinery: The opening of the film, an eerie moment in every sense, would not be out of place in any imaginative production of the early part of the century. The opening shot follows a wheel on the dirt floor, the next shot reveals a bullock cart, and then a cut reveals a coffin carried by the vehicle. The sound is not yet that of the guitar player, we are listening to a wailing sound that feels like something out of a Coffin Joe movie, and we follow the burial in continuous camera movements that force the light against the shadow and the pain on Barbara Fazio's face against the sound of her crying. It is an objective execution in sensations that is paradoxically excessive in the mystery of its origins, a feeling that is maintained throughout the film and that makes it seem to have emerged from a vacuum in historical time.
To treat Candeias' cinema in terms of the "primitive" belongs to an obsolete and insufficient critical approach; it is difficult for anyone to watch The Inheritance and not notice a high stage of filmic awareness that is more than just modern. However, since we are talking about a filmmaker who specializes in conceptual knots, his modern experimentalism also needs to be perceived as a receptive ground for the rediscovery of old discoveries, a rare suspension of referentials that doesn't see a great difference between periods of cinema, but which converts and manipulates itself as it inserts itself into particular ideas that are nothing but inventions.
Nonconformity tends to generate an interest in deformity, and the way Hamlet's skull is transformed into an ox skull must give some sign of the earthy path we are treading. The Inheritance is a film of overlapping insertions like any other by Candeias, where the camera infiltrating the terrain goes on to confront the transfusions it ends up committing in its trail of radicalizing the means of filmmaking, but it's also unique in that it maintains that nervous flow in a great sequence of intersecting faces, an approximation of individual expressions that manages to absorb the same weight as grandiose open shots. So if there is anything possible between silent cinema, classical dramaturgy, anthropology, the American Western, and the Italian Western, Candeias is on a cross-cutting journey through this cosmography.
A Herança (1970) é um filme preto e branco, fundamentalmente composto por close-ups e acordes de violão. Pela via de um faroeste farsesco, Ozualdo Candeias transforma Hamlet em parábola, pega Shakespeare como essa ambição por uma universalidade trágica que abarque o nível de seu experimentalismo, um contraponto à sua especificidade radical. Hamlet é adaptado como um pressuposto narrativo ao invento vernacular que atravessa a criação de qualquer imagem que esteja sob o domínio do realizador.

David Cardoso, um ator variavelmente shakespeariano, é o Omeleto que ocupa grande parte do tempo de tela. Estrelando um filme sem diálogos gravados, tendo o texto que corta as imagens como parte de seu fluxo de movimento, a dramaturgia da performance de Cardoso e de seus companheiros de cena é pensada exclusivamente como expressão. Isso faz com que algumas coisas importantes aconteçam: Primeiro, há um redobramento de peso em cada rosto que entra no quadro. Segundo, a ordem de suas expressões passa a integrar uma corporificação do ambiente onde o filme está posto, ou seja, aprofunda a significância da locação em um gesto que vai além da dispersão geográfica continuamente proposta por Candeias ao longo de sua carreira. A escolha de Candeias em filmar lugares nunca atingidos pelo interesse de cineastas anteriores acaba sempre como uma proposição formal, de um tratamento da locação que busque a câmera como um motor de invenções integrado à atores que capacitem as influências materiais da terra em que se filma.
Nisso, é de se pensar como esse espaço interiorano se reinventa, não por receber a narrativa shakespeariana que lhe confere uma dramaticidade encenada, mas pela posição de uma câmera que o acelera. Contra o bucolismo típico, os animais, a fazenda e a mata são entrecortados por uma descida fugaz da lente por sua configuração social. O campo é percebido como esse espaço isolado onde há concentrada disputa de poder, em que o dono das terras que mata o irmão para casar com a cunhada enfrenta a insanidade do sobrinho em revolta, onde a pulsão de morte estabelece as fronteiras entre propriedades e radicaliza a passagem do tempo.
O fogo cruzado dessas movimentações fílmicas encontra um assentamento semântico no chão de texto que pontualmente nivela o quadro. Há de se perceber que a função da palavra escrita em A Herança não é o de substituir a gravação dos diálogos, na maioria das vezes o texto em tela está acertadamente exercendo um papel ambíguo entre a realidade e o inconsciente, já que nunca é acompanhado pelo movimento da boca dos atores. Quando os personagens resolvem abrir a boca, são acompanhados por sons de animais, tiros de revólver ou pelas notas de violão que dificilmente abandonam os quadros. Para os atores, o texto corre num plano contraventor. Se essas palavras não se explicam como sendo ditas, pensadas ou narradas, fica esclarecido que o efeito imposto por elas está num sentido bem mais divergente do que explanatório, como um choque de desmaterialização que a semântica textual oferece às imagens tácteis.
Esse texto em tela obriga-nos a pensar no cinema silencioso, o que é justo, mas ele parece estar mais presente em certas decisões de enquadramento do que na experimentação central com o texto que substitui a voz. Um exemplo principal que pode exemplificar essa relação do quadro de Candeias com o maquinário cinematográfico antigo: A abertura do filme, um trecho sinistro em todos os sentidos, não estaria fora de lugar em qualquer produção imaginativa do início do século. O plano inicial acompanha uma roda sobre o chão de terra, o plano seguinte revela um carro de boi e o próximo corte revela um caixão carregado pelo veículo. O som ainda não é do violeiro, estamos ouvindo uma lamúria sonora que parece saída de algum filme do Mojica, e vamos acompanhando o enterro em movimentos de câmera contínuos que forçam a luz contra a sombra e a dor no rosto da Bárbara Fazio contra o som de seu choro. É uma execução objetiva em sensações que é paradoxalmente excessiva no mistério de suas raízes, um sentimento que se mantém durante todo o filme e que faz com que ele pareça ter saído de um vácuo no tempo histórico.
Tratar o cinema de Candeias nos termos do “primitivo” pertence a um trabalho crítico obsoleto e insuficiente, é difícil que alguém assista A Herança e não perceba um estágio elevado de consciência fílmica que é mais do que contemporâneo. Porém, como estamos tratando de um cineasta especializado em nós conceituais, seu experimentalismo moderno precisa também ser percebido como um terreno receptivo à redescobertas de antigas descobertas, uma rara suspensão de referenciais que não vê grande diferença entre estágios do cinema, mas que se converte e se manipula à medida que se insere em ideias particulares que não são nada além de invenções.
A inconformidade tende a gerar um interesse geral pela deformação, e a forma como crânio de Hamlet se transforma em um crânio de boi deve dar algum sinal do caminho terroso que estamos pisando. A Herança é um filme de sobreposição de inserções como qualquer outro de Candeias, onde a câmera infiltrada no terreno vai enfrentando as transfusões que acaba por cometer em seu trilho de radicalização dos meios de cinema, mas também é único por manter esse fluxo nervoso em uma grande sequência de rostos que se cruzam, uma aproximação das expressões individuais que consegue absorver o mesmo peso de grandiosos planos abertos. Portanto, se existe algo possível entre o cinema silencioso, a dramaturgia clássica, a antropologia, o faroeste americano e o faroeste italiano, Candeias está em uma jornada transversal por essa cosmografia.
In 1978, after 14 years of repression and silence imposed by the civil-military dictatorship, workers at the Scania truck factory in São Bernardo do Campo (SP) declared a general strike demanding a 20% salary increase, a percentage above the readjustment proposed by the government. This act triggered a cycle of strikes by workers in São Paulo and its periphery, which took place between 1978 and 1980, mobilizing a broad spectrum of Brazilian society in the struggle for wage increases, union freedom and better living and working conditions. A key moment in the history of the struggles of the workers and the poor of the New Republic, the strikes in São Paulo can be considered the origin not only of the emergence of the so-called New Unionism, the Workers' Party, the Central Única dos Trabalhadores (CUT) and leaders such as Luiz Inácio Lula da Silva, but also the origin of the dreams of a new democratic Brazil made with and for workers subordinated by the economic and political elites. The working class emerged as a new social actor, with a disruptive force that irreversibly transformed Brazilian society.

But the strikes undertaken by São Paulo metalworkers did not happen overnight. As witnessed by the filmmaker and social scientist Renato Tapajós - who is participating in the Cinelimite program Raised Fists, Camera Rolling: The São Paulo Metallurgical of 1978-1980 and the of Luiz Inácio Lula da Silva
with the films Acidente de trabalho (1979), Trabalhadoras metalúrgicas (co-directed by Olga Futemma, 1978), Greve de março (collective direction, 1979), A luta do povo (1980) and Linha de montagem (1982) -, the confrontation of the strike movement with the so-called “pelegos” (that is, the leaders of the labor unions under the intervention of the military) took shape from the grassroots work of clandestinely organized workers since the late 1960s. From the factory floor emerged what was commonly called an authentic or combative unionism. Dissatisfied with the terrible working conditions, the low wages and the political ineptitude of the labor unions under the intervention of the military government, this network of workers acted towards the transformation of the labor union structure and, by doing so, they ended up shaking the structures of subjection of the Brazilian working class - without, of course, extinguishing it once and for all.

The union structure at the time had been implemented decades before by the government of Getúlio Vargas, in a way that presents a clear conflict of interests between the working class and their employers. With the military coup of 1964 and the subsequent federal intervention in the labor unions, this model of corporatist unionism intensified. In the mosaic of works presented in this program, we repeatedly find the discourse that unions under military intervention represented the interests of employers and multinationals to the detriment of the working class. The generation that mobilized after 1978 and whose memories we watch in this program
rose up against this petrifying configuration. Lula and the working
class as a political and cultural
character emerged, therefore, from the depths of the repression of the military regime.

This socio-political upheaval caught the attention of a number of Brazilian documentary filmmakers, who joined labor unions and social movements to uniquely record this process of strikes. The account of one of the filmmakers who make up the group of auteurs in this program produces a strong image to think about the contradictory feelings that affected the filmmakers engaged in this situation. When Sérgio Péo faced the strength of the strike movement, he thought: “Damn! The dictatorship is over!”. “Adventure” is the term  Péo used to describe what this heterogeneous group of documentary filmmakers was doing at that moment that represented the requiem of the military regime.
In an essay entitled "Worker, an emergent character", Jean-Claude Bernardet identifies a symptom of Brazilian cinema. The example was excluded from the cast of characters in national cinema until the mid-1970s. In its place, the figure of the trickster and the vagabond, for example, prevailed. And when Cinema Novo implemented a critical attitude towards Brazilian society, the sertanejo was the character chosen as a symbol of the oppressed of capitalist society. The lack of an urban working class perspective in national cinema shows how filmmakers were reluctant to think about the urban world from the point of view of class society. But that changed during the intensification of capitalist contradictions under the military regime and, in the 1970s, especially during the period of the São Paulo metallurgical companies, the worker suddenly appears as a character in several films, and an expressive portion of this filmography is found in this program. Bernardet's thesis is that the advance of capitalism in Brazilian society was also expressed in the audiovisual sector, which contributed to the organization of filmmakers as a social class. The loss of income and status brought the filmmakers closer to the working class, a configuration that created favorable material and ideological conditions for the approximation between the two social groups.

The first two documentaries of the Cinelimite program present us with the context of labor relations and the precarious working conditions in factories on the outskirts of São Paulo. Our adventure through this mnemonic labyrinth begins in Acidente de trabalho (Renato Tapajós, 1979). Like other works by Tapajós, this documentary has its feet on the city streets. The first image that takes shape in front of us is precisely an urban view: we see the movement of workers in a metropolitan center while a voice tells us its misfortune. The reports collected by the documentary filmmaker narrate the precarious working conditions and the negligence of employers and the government that symptomatically led to a series of work accidents that immobilized the bodies of several poor workers on the outskirts of São Paulo.
The film records memories of events that precede the great metalworkers' strikes and shows them as building material for the popular fury that took shape in the strikes of 1978, 1979 and 1980. Everything happens as if Tapajós was trying to record the material reasons for the explosion of the strike movement of the late 1970s. This work serves, therefore, as a piece that brings together memories of the terrible working conditions in Brazilian factories during the Military Dictatorship that ruled the country from 1964 to 1985.

Trabalhadoras Metalúrgicas (Olga Futemma & Renato Tapajós, 1978) is a forgotten gem of Brazilian cinema. A film made during the 1978 Metallurgical Women's Congress that records moments of the event articulated to scenes from the lives of female workers in ABC Paulista. The documentary thinks about a fundamental issue for the history of social movements: the struggle for women's rights. We follow the life and political action of feminist fronts inside the factories. As one of the activists tells us, the aforementioned congress was “a school” for a whole generation of workers who, from then on, intensified the demand for equal wages and better working conditions in a struggle that radically questioned the patriarchal order of labor relations in Brazilian factories.
In Braços Cruzados, Máquinas Paradas (1979) we find the history of the political tensions of São Paulo unionism shortly before the establishment of the new board headed by Lula and his companions. It is a film that presents the internal contradictions of the trade union movement at a turning point in the struggle of Brazilian workers. The documentary by Roberto Gervitz and Sérgio Toledo reveals the movements of the campaigns for the presidency of the ABC metalworkers' union in a context of confrontation between two paradigms of unionism. On the one hand, the union heir to the labor movement of Getúlio Vargas, on the other, what was later called Novo Sindicalismo. In summary, the first model, hegemonic until 1978, represents the employer class through union leaders who offered workers an ineffective assistance system, serving more to immobilize the struggles of the working class than to leverage them. The second orientation, as already mentioned, fought for the right to strike as the main negotiation tactic with the bosses and the government - it is a union organization that emerged organically within the factory.
In addition to the history that we get to know through the documentary, I must emphasize that this is a film of landscapes and physiognomies. A work that seeks at various times to record machinic views and portraits of workers from the underworld of São Paulo's factories. Despite being well-intentioned and clearly positioned on the side of the workers, the film has a problematic feature that should be mentioned. There is a clear gap between the documentarians who film and the workers filmed, that would not be a problem for critics if it did not generate complications of documentary mise en scène. The film observes the workers from afar as if looking at something exotic. Their successful search for picturesque physiognomies and landscapes leads them to a stylization that objectifies the workers. But the film is not limited to this matter and to affirm this would be to close one's eyes to the film’s plastic and discursive force. The montage energizes the spectator's body, as it follows a dialectical orientation that articulates the past of corporatist labor with the emergence of the new ABC unionists, in addition to confronting oppressors and oppressed. This shock produces a veritable amalgamation of times that, together, take the form of a bomb. The dialectic between images of the intervening unionists and the workers' opposition at the end of the documentary intensifies the dialectical character of the film, having as a synthesis the appearance of a crowd of workers in what was, at the time, the biggest strike since the military coup. The voice ends the narration explosively: “1978: the union structure begins to fall”. The contradictory writing of Braços Cruzados, Máquinas Paradas makes it a challenging object of study for the analyst.

Greve (João Batista de Andrade, 1979) builds an overview of the strikes of 1979, following the thread of events since the explosion of the strike movement, passing through the arrest of Lula and other union leaders, and ending with his release and the resumption of the struggle with the speech at the Vila Euclídes soccer field, in which the union board invites the workers to resume work and negotiations with the bosses. The film begins with the image of police officers patrolling the streets on horseback, a recurring image in the documentary that seeks to tension images of the popular struggle with records of state repression forces - a stylistic trait that we find in other works of the program. A notable formal aspect of the film is the adoption of a documentary writing that refers to the “sociological model of documentary” identified by Jean-Claude Bernardet in his analysis of some Brazilian documentaries. It is a textual organization that uses the voices of popular workers as “voices of experience” which, in the film, are articulated by the documentarist's “voice of knowledge” in a relationship of obvious asymmetry. In the end, it is the documentarian's voice that tells us the story, using the experiences collected to affirm his theses about the events. Despite this, the film makes an effort to record and contextualize the struggles of workers in that emblematic year for Brazilian history. We find in this documentary, therefore, a Brazil that is pressing for the end of the military dictatorship in a gesture that shows a strong desire for the democratic opening of the country.
Another work by Batista de Andrade, Trabalhadores - Presente! (1979) takes a dive into the celebrations of May 1, 1979, Labor Day. Following a tradition invented by the populist regime of Getúlio Vargas, the military government held an official commemoration of this national holiday at Pacaembu Stadium in São Paulo. Faced with this ghostly performance that celebrated a false union between capital, labor and the dictatorship, the workers led by Lula's union group produced an independent celebration that confronted the official party. The film begins in the hubbub of a fair full of workers. The montage entangles interviews with the camera wandering through the face of the popular fair: we walk among faces, labor gestures, food being prepared and sold.

A mixture of party and fury appears on the scene. The workers' struggle emerges to the sound of an accelerated samba. Our blood heats up before the people who rise up to claim their rights and celebrate. The filmmaker's voice contextualizes the images: we are in the first independent commemoration of Labor Day in 15 years of civil-military dictatorship. The location is the emblematic Vila Euclides Stadium in ABC Paulista, where workers started to meet after the interventions in the metalworkers' union. The workers managed to carry out the celebration with the help of civil-democratic organizations that gained strength in the final years of the dictatorial regime. It is important to note that the film not only seeks to draw a panoramic portrait of the event, but also pays attention to everyday movements, misunderstandings, small conflicts, discussions, the backstage of social organization. The documentary ends with the recording of a beautiful speech by Lula that serves as a glimpse of the democratic opening to come.
Greve de Março (1979) is a film by collective authorship that strongly represents the desire for intervention, participation and engagement of the filmography of the cycle of metalworkers' strikes. The film's first images are photographs of police officers patrolling the city. The montage confronts the images of police forces with photos of striking workers in action. The voice of a worker narrates the facts: “The strike was not declared by the workers. It was decreed by the intransigence of the employer class who only want to exploit the workers. When it comes time to give a raise, they don't even want to talk. Their business is to talk to the idle machines”. Drums begin to beat in friction with the images of the police repressing the workers in a march, a gesture that sets the pace of the confrontation between the State and the people. Like other works in this program, the writing of Greve de Março follows a dialectical orientation - a film woven under the sign of confrontation that seems to mimic the social tensions it sought to record.

This work therefore narrates the events of the March 1979 strike from the perspective of the working class, which, in the film, is represented by testimonies of workers and Lula's speeches during the period of strikes. The end of the work shows a public speech by Lula at the ABC Stadium after his release, a scene that was widely recorded by documentaries of the time. In his speech, the future president of Brazil asks that workers return to work so that negotiations with the employer class can continue without, however, lowering workers' morale. Lula and his board promise that if the movement's demands are not met, a new strike will begin. The discursive ability of the political leader is widened by the immediate success of his performance. To our astonishment, the proposal was almost unanimously accepted by the more than 100,000 workers gathered in the assembly. One of the most vigorous expressions of Lula's political capital in this period is, without a doubt, the images of workers' hands in the air and clenched fists in acceptance of the proposal by the directors of the São Bernardo do Campo metalworkers' union that we see in this and other films from the program.

The film ends with the leader of the workers being lifted on the shoulders of the crowd that shouts: “United workers, you will never be defeated!”, one of the great war cries of a generation that rebelled against the tyranny of world capitalism that, as we know, has always grown up under the tutelage of dictatorships more or less masquerading as democracies.
Like other works in this program, ABC Brasil (1980), by José Carlos Asbeg, Luíz Arnaldo Camps, and Sérgio Péo, is a libertarian short film in its shape - but there is an anarchic movement here that escapes the other films presented in this mosaic. The documentary experiences a sensorial immersion in the assembly that closes the previous film. We have to admit that this is a gem of a Brazilian short film, both for its stylistic aspects and for the institutions involved in its production. About the first reason, I highlight its plastic beauty, its artisanal montage that looks more like a surrealist collage and the choreography of the furious bodies that its mise en scène rehearses. Produced by the Brazilian Association of Documentarists and Short Filmmakers (ABD) and the Cooperative of Autonomous Filmmakers (CORCINA), the film begins in an incendiary way with reddish images punctuated by a guitar solo by Jimmy Hendrix that, combined in an unsuspected experiment, ignite our senses - a frantic agitation takes over the bodies of the spectators, who feel the need to dance in front of the camera. A close-up on a photograph shows one of the marches of furious-looking workers that erupted in the 1979s. Hands up and mouths open - the gesture and the scream. Zooming out reveals the breadth of the event: a crowd fills the city streets.

It would be wrong to assume that this is another film about one of Lula's most famous speeches during the general strike of metallurgical workers in 1979. Like other works by the brilliant filmmaker Sérgio Péo, ABC Brasil is an acrobatic film. We find a mise en scène that manages to wander through the landscape of the labor union meeting through very well-paced zooms and panoramics, interrupting our enjoyment to report the unfolding of the metallurgists' struggle through voice and still images. The ending intensifies the sound experiment taken on by the filmmakers: Lula is released from jail and returns to Vila Euclides Stadium. To the sound of Forró do ABC, by Moraes Moreira, we see the union leader being received with hugs, tears and war cries. The fight goes on. That's the lesson of ABC.
In A Luta do Povo (1980), Renato Tapajós, in alliance with the Popular Health Association (APS), shows us the intertwining of different popular movements in the 1970s. The singularity of this film resides in this panoramic record that reveals the connections between social agendas and popular struggle movements in São Paulo and its periphery. The work begins with a card in red fonts against a black background that informs us of an insipid occurrence: the murder of the metallurgist Santo Dias da Silva by the police during the salary campaign of the strike movement in São Paulo's ABC region. The narrator's voice reads the writing to the sound of a police siren. We see the threshold of the Sé Cathedral, in downtown São Paulo. A vertical camera movement shows the mourning workers during the funeral rites of the cowardly murdered workers' leadership. We follow the procession and the camera focuses on the worker's widow. Her lament quickly becomes a battle cry chanted by the crowd: “The fight continues!”. The scene is revealing, as it shows us a characteristic passage of popular struggles around the world. It is precisely loss and mourning that catapult popular uprisings. The collective wail quickly turned to a gesture of fury.

The narrator not only contextualizes the events, but also provokes reflections, raises questions around the nation's social problems and condemns the system of oppression that plagues the poor in Brazil. He is not a neutral narrator, but a historical subject implicated in the historical situation. The narrator of the work is, therefore, a character who takes a position in the face of events and seeks urgent answers from society in the voices of the workers.

The workers condemn the capitalist exploitation of work, the labor legislation that does not protect them, and a series of problems that do not only concern the country's dictatorial government system, but above all concern the plots of international capitalists who profit through global exploitation schemes. The awareness of the transnational procedures that sustain the precarious working conditions of metallurgical workers are clearly and intelligently exposed by one of the workers interviewed by Tapajós, one of the protagonists of the strike movement that reappears in other works of the program, called Osvaldo.
Linha de montagem (1982) makes a kind of historical and critical assessment of the strike movement of the years 1978-1980 through the voice of its protagonists. An interview with Lula structures the navigation carried out by the film through a labyrinth of memories of the great strikes. Other key figures of the trade union movement are interviewed in order to contextualize the period of confrontations of the labor movement in the late 1970s and its impacts on Brazilian society. It is a communicative and pedagogical work that builds a crucial historical narrative to understand the social tensions of the past from the point of view of the oppressed and, also, to think about solutions for the current challenges of Brazilian society.
Santo e Jesus, Metalúrgicos (1983), by Cláudio Kahns & Antonio Paulo Ferraz is, without a doubt, the greatest masterpiece of the period. In stylistic terms, the film presents a unique textual organization by confronting characters and voices in a markedly dialectical texture. Of course, this is not the only film that presents confrontation as a form organizing facts, but this is the work that best incorporated the contradictory character of the social process recorded and narrated by filmmakers engaged in the struggle of São Paulo workers. The duo of documentary filmmakers takes two emblematic characters of the trade union movement and their respective murders as a means of not only showing, but also critically understanding the great São Paulo strikes in all their complexity. To this end, the film ventures into the interpellation of enemies, that is, the killers of workers and their surroundings: companies, bosses, the police and, finally, the government. The dialectical montage confronts the enemy's point of view with images of the workers' struggle. One of the main reasons for the brilliance of this film resides in the fact that Santo e Jesus, Metalúrgicos is a work resulting from a radical gesture of observation, provocation and carnivalized disavowal of those in power. By turning their cameras with special dexterity towards the businessmen and their talkative lawyers, the brutal police officers and their absurd lies, these documentarians produced rare images that served, on the editing table, as building material for a film that rubs violently and, at times, ironically, the apparitions of the executioners and the resistance figures. If all the films included in this program show, each in their own way, the movement of social movements, Santo e Jesus, Metalúrgicos is, without a doubt, the work that perfectly hits the rhythm of this movement: the rhythm of death and mourning converted into fury.
Finally, we come to the most studied and remembered work of the 1979-1980 strike period: ABC da Greve (1990), by Leon Hirszman. This is a curious film, as it was made in two moments. The documentary was shot between the months of March and May of 1979, but was only finished three years after the director's death. This was only possible thanks to the initiative of photographer Adrian Cooper, who assembled the raw material left over from the filming. The work is therefore a complex configuration and composite authorship, even though Cooper tried to faithfully follow Hirszman's intentions. Another important aspect of the production method of the work is its filming was an experiment for the research of another work, the fictional drama Eles não usam black-tie (1981), adaptation of the homonymous play by Gianfrancesco Guarnieri, from Teatro de Arena. ABC da Greve follows the strike movement with special attention to the figure of Lula in a panoramic style that does not fail to show scenes in which the director, like a researcher, challenges representatives of the opposite pole of the labor conflict. The film moves between assemblies, factories, protests, negotiations, leafleting in the neighborhoods and other activities in a fragmentary way, assembling a true mosaic of the memory of the strikes with attention to the backstage and the residues of the most emblematic scenes. This is, without a doubt, a monumental work that narrates the epic of the metallurgical workers of ABC Paulista in the late 1970s.
Faced with these precious images, skepticism overtakes us: what to do with these images from the past at a time when work and workers are in a violent crisis? But hasn't the world completely changed, so that it would be impossible to identify similarities between these reminiscences and our current situation? The Brazilian cinema of the last 20 years, with important exceptions such as films by Affonso Uchôa, Adirley Queirós, Juliana Rojas, Marco Dutra, Dácia Ibiapina, Renan Rovida and others, has relegated the worker to oblivion, although the current moment shows us signs of renewal in the figuration of the new modalities of the urban proletariat. Be that as it may, it is a known fact that the worker has become a phantom character in politics and culture. One way to think creatively about these images is to use them in our present of new aspirations, challenges and dangers. Is it possible to point out new paths from this montage between the past and the present? What do these stories of factory workers in the past tell us about the world of today's delivery men and street drivers? Without aiming to answer complex questions in a short essay, I can only say that the world of the contemporary urban precariat is indeed radically different from the universe of the shop floor, but the updated forms of exploitation carry survival of the oppressions of yore and, notably, the strike remains one of the main tactics of the workers' war.

It is important to remember that the working class and Lula, its main leader, emerged on the board of Brazilian politics and culture during the crisis of the Brazilian civil-military dictatorship, and Jair Messias Bolsonaro gained power and assumed the Presidency of the Republic in the crisis of representative democracy that began in 2013. We can conclude that what is in dispute today in Brazil is the construction of a new political body from the guts of our current catastrophe: the world of the precariat. From the bowels of the world of workers without rights, sparks of hope for a new social transformation can emerge. Articulating the images of the metalworkers' strikes and the rise of the working class as a character in a context of intensifying the economic, social and cultural contradictions of this sad Republic is, after all, to raise questions, provoke provocations and open our eyes to the improbable, the invisible. If an uprising does not take place without chants, we must look carefully at the ruins of capitalism and this “brave new world” that has been configured in recent decades in order to then sing of another possible world. It is not by chance that the main current trends of Brazilian independent cinema have produced works that make this dystopian world strange from opposite poles, but which, today we know, can converge in explosive experiments: documentary and speculative fiction - cinema “under the risk of the real” and the fanciful fables that radicalize the contradictions of the present. Be that as it may, the films made during the metalworkers' strikes represent a period not only of intense stylistic experimentation in national documentary filmmaking, but also a true political aesthetic laboratory in which an aesthetic of the scream was germinated in alliance with the oppressed. These films taught us that a cinema in friction with the world is a fertile way to combine stylistic experimentation with political intervention.
Em 1978, depois de 14 anos de repressão e silêncio impostos pela ditadura civil-militar, os trabalhadores da fábrica de caminhões da Scania, em São Bernardo do Campo (SP), decretaram greve geral exigindo um aumento salarial de 20%, porcentagem acima do reajuste proposto pelas manobras do governo. Esse ato desencadeou um ciclo de greves dos trabalhadores em São Paulo e sua periferia, que ocorreu entre 1978 e 1980, mobilizando um amplo espectro da sociedade brasileira na luta por aumentos salariais, liberdade sindical e melhores condições de vida e trabalho. Momento chave da história das lutas dos trabalhadores e dos pobres da Nova República, as greves paulistas podem ser consideradas o ponto originário não apenas do surgimento do chamado Novo Sindicalismo, do Partido dos Trabalhadores, da Central Única dos Trabalhadores e de lideranças como Luiz Inácio Lula da Silva, mas também a origem dos sonhos de um novo Brasil democrático feito com e para os trabalhadores subalternizados pelas elites econômicas e políticas. A classe trabalhadora surge como um novo ator social com uma força disruptiva que transformou de maneira irreversível a sociedade brasileira.

Mas as greves dosmetalúrgicos paulistas não surgiram da noite para o dia. O testemunho docineasta e cientista social Renato Tapajós, que participa no programa Cinelimite Raised Fists, Camera Rolling: The São Paulo Metallurgical Strikes of 1978-1980 and the Rise of Luiz Inácio Lula da Silva com os filmes Acidente de trabalho (1979), Trabalhadoras metalúrgicas (co-directed by Olga Futemma, 1978), Greve de março (direção coletiva, 1979), A luta do povo (1980) and Linha de montagem (1982), é revelador. De acordo com Tapajós, o confronto do movimento grevista com os chamados “pelegos” - isto é, os dirigentes dos sindicatos sob intervenção dos militares - foi se configurando a partir de um trabalho de base de trabalhadores organizados clandestinamente desde o final dos anos 1960. Insatisfeitos com as péssimas condições de trabalho, os baixos salários e a inépcia política dos sindicatos sob intervenção do governo militar, essa rede de trabalhadores agiu em direção à transformação da estrutura sindical e, com isso, terminaram por abalar as estruturas de sujeição da classe trabalhadora da sociedade brasileira - sem, obviamente, extingui-la de uma vez por todas.

A estrutura sindical vigente havia sido implantada décadas atrás pelo governo de Getúlio Vargas, modelo que apresenta um claro conflito de interesses entre a classe trabalhadora e patronal. Com o golpe militar de 1964 e a subsequente intervenção federal nos sindicatos, este modelo de sindicalismo corporativista se intensificou. No mosaico de obras apresentadas neste programa, encontramos mais de uma vez o discurso de que os sindicatos sob intervenção militar representavam os interesses dos patrões e das multinacionais em detrimento da classe trabalhadora. A geração que se mobilizou a partir de 1978 e cujas memórias assistimos neste programa se levantou contra esta configuração petrificante. Lula e a classe trabalhadora como personagem político e cultural surgiram, portanto, das entranhas da repressão do regime militar.

Esta ebulição sócio-política chamou a atenção de uma série de documentaristas brasileiros, que se juntaram aos sindicatos e movimentos sociais para registrar de maneira singular este processo das greves. O relato de um dos cineastas que compõem o quadro de autores deste programa produz uma boa imagem para pensar os sentimentos contraditórios que acometeram os cineastas engajados nesta situação. Quando Sérgio Péo se deparou com a força do movimento grevista, ele pensou: “Caramba! A ditadura acabou!”. “Aventura” é o termo que o autor utilizou para descrever o que este grupo heterogêneo de documentaristas estava realizando naquele momento que representou o réquiem do regime militar.
Num ensaio intitulado "Operário, personagem emergente", Jean-Claude Bernardet identifica um sintoma do cinema brasileiro. O trabalhador foi praticamente excluído do quadro de personagens do cinema nacional até meados dos anos 1970. Em seu lugar, imperava a figura do malandro e do vagabundo, por exemplo. E quando o Cinema Novo implementou uma atitude crítica diante da sociedade brasileira, foi o sertanejo o personagem escolhido como símbolo do oprimido da sociedade capitalista. A inexistência da perspectiva do operariado urbano no cinema nacional mostra como os cineastas tinham uma relutância em pensar o mundo urbano do ponto de vista da sociedade de classes. Mas isso foi mudando durante a intensificação das contradições capitalistas sob o regime militar e, nos anos 1970, sobretudo durante o período das greves dos metalúrgicos paulistas, o operário surge de repente como personagem em vários filmes, sendo que uma parcela expressiva dessa filmografia se encontra neste programa. A tese de Bernardet é que o avanço do capitalismo na sociedade brasileira também se expressou no setor do audiovisual, o que contribuiu para a organização dos cineastas como classe social. A perda de renda e de status aproximou os cineastas da classe operária, configuração que criou condições materiais e ideológicas favoráveis para a aproximação entre os dois grupos sociais. Vamos aos filmes.

Os dois primeiros documentários do programa do Cinelimite nos apresentam o contexto de relações laborais e as precárias condições materiais de trabalho nas fábricas das periferias de São Paulo. Nossa aventura por este labirinto mnemônico começa em Acidente de trabalho (Renato Tapajós, 1979). Como outras obras de Tapajós, este documentário tem os pés fincados no chão das ruas da cidade. A primeira imagem que toma forma diante de nós é justamente uma vista urbana: vemos o movimento de trabalhadores num centro metropolitano enquanto uma voz nos narra sua desgraça. Os relatos coletados pelo documentarista narram as condições precárias de trabalho e o descaso dos empresários e governo que, sintomaticamente, produziram uma série de acidentes de trabalho que imobilizaram os corpos de vários operários pobres da periferia de São Paulo.
O filme registra memórias de ocorridos que precedem as grandes greves dos metalúrgicos e as mostra como material de construção para a fúria popular que tomou forma nas greves de 1978, 1979 e 1980. Tudo se passa como se Tapajós estivesse buscando registrar as razões materiais da explosão do movimento grevista do final dos anos 1970. Na montagem do programa, esta obra serve, portanto, como uma peça que reúne rememorações das péssimas condições de trabalho das fábricas brasileiras durante a Ditadura Militar que governou o país entre 1964 até 1985.

Trabalhadoras Metalúrgicas (Olga Futemma & Renato Tapajós, 1978) é uma jóia esquecida do cinema brasileiro. Um filme realizado durante o Congresso das Mulheres Metalúrgicas de 1978 que registra momentos do evento articulados a cenas da vida das trabalhadoras do ABC Paulista. O documentário pensa uma questão fundamental para a história dos movimentos sociais: a luta por direitos das mulheres. Acompanhamos a vida e a atuação política das frentes feministas dentro das fábricas. Como nos relata uma das militantes, o congresso supracitado foi “uma escola” para toda uma geração de operárias que, a partir daí, intensificaram a reivindicação por salários iguais, melhores condições de trabalho numa luta que questionou radicalmente a ordem patriarcal das relações laborais nas fábricas brasileiras.
Em Braços Cruzados, Máquinas Paradas (1979) encontramos a história das tensões políticas do sindicalismo paulista pouco antes do estabelecimento da nova diretoria chefiada por Lula e seus companheiros. Trata-se de um filme que apresenta as contradições internas ao movimento sindical num momento de virada da luta dos trabalhadores brasileiros. O documentário de Roberto Gervitz e Sérgio Toledo nos revela as movimentações das campanhas para presidência do sindicato dos metalúrgicos do ABC num contexto de confronto entre dois paradigmas de sindicalismo. De um lado, o sindicato herdeiro do trabalhismo de Getúlio Vargas, de outro o que ficou chamado, posteriormente, de Novo Sindicalismo. Em resumo, o primeiro modelo, hegemônico até 1978, representa a classe patronal através de dirigentes sindicais que ofereciam aos operários um assistencialismo ineficaz, servindo mais para imobilizar as lutas da classe trabalhadora do que para alavancá-las. A segunda orientação, como já mencionamos, lutou pelo direito à greve como principal tática de negociação com os patrões e o governo - é uma organização sindical que surgiu organicamente dentro da fábrica.
Para além da história que passamos a conhecer através do documentário, devo destacar que este é um filme de paisagens e fisionomias. Uma obra que busca em vários momentos registrar vistas maquínicas e retratos de trabalhadores dos submundos das fábricas de São Paulo. Apesar de bem intencionada e claramente posicionada do lado dos trabalhadores, a obra apresenta uma característica problemática que deve ser mencionada. Há um claro distanciamento entre os documentaristas que filmam e os operários filmados que não seria um problema para a crítica se não se convertesse em questões de mise en scène documentária. O filme observa os trabalhadores de longe como quem olha algo exótico. Sua busca - bem sucedida - por fisionomias e paisagens pitorescas os leva a uma estilização que objetifica os operários. Mas o filme não se resume a isto e afirmá-lo seria cerrar os olhos para sua força plástica e discursiva. A montagem energiza o corpo do espectador, uma vez que segue uma orientação dialética que articula o passado do trabalhismo corporativista com a emergência dos novos sindicalistas do ABC, além de confrontar opressores e oprimidos. Esse choque produz um verdadeiro amálgama de tempos que, juntos, tomam a forma de uma bomba. A dialética entre imagens dos sindicalistas interventores e a oposição operária no final do documentário intensifica o caráter dialético da obra, tendo como síntese a aparição de uma multidão de operários no que foi, à época, a maior paralisação desde o golpe militar. O voz encerra a narração de forma explosiva: “1978: a estrutura sindical começa a cair”. A escritura contraditória de Braços Cruzados, Máquinas Paradas faz deste filme um objeto de estudo desafiador para o analista.

Greve (João Batista de Andrade, 1979) constrói um panorama das paralisações de 1979, seguindo o fio dos acontecimentos desde a explosão do movimento grevista, passando pela prisão de Lula e outras lideranças sindicais e terminando com sua soltura e a retomada da luta com o discurso no campo de futebol da Vila Euclídes em que a diretoria do sindicato convida os operários à retomada do trabalho de das negociações com os patrões. O filme começa com a imagem de policiais patrulhando as ruas à cavalo, imagem recorrente no documentário que procura tensionar imagens da luta popular com registros das forças de repressão do estado - traço estilístico que encontramos em outras obras do programa. Um aspecto formal notável da obra é a adoção de uma escritura documentária que remete ao “modelo sociológico do documentário” identificado por Jean-Claude Bernardet em sua análise de alguns documentários brasileiros. Trata-se de uma organização textual que utiliza as vozes dos trabalhadores populares como “vozes da experiência” que, no filme, são articuladas pela “voz do conhecimento” do documentarista numa relação de assimetria patente. No final, é a voz do documentarista que conta a história, utilizando as experiências coletadas para afirmar suas teses sobre os eventos registrados. Apesar disso, o filme faz um esforço de registrar e contextualizar as lutas dos operários naquele ano emblemático para a história brasileira. Encontramos neste documentário, portanto, um Brasil que faz pressão para o fim da ditadura militar num gesto que expõe um forte desejo pela abertura democrática do país.
Outra obra de Batista de Andrade, Trabalhadores - Presente! (1979) realiza um mergulho nas comemorações do 1º de maio de 1979, dia do trabalhador. Seguindo uma tradição inventada pelo regime populista de Getúlio Vargas, o governo militar realizou uma comemoração oficial deste feriado nacional no Estádio do Pacaembu, em São Paulo. Diante desta performance fantasmagórica que celebrou uma falsa união entre o capital, o trabalho e a ditadura, os operários liderados pelo grupo sindical de Lula produziram uma festa independente que confrontou a festa oficial. O filme começa no burburinho de uma feira repleta de trabalhadores. A montagem emaranha entrevistas com a deambulação da câmera pela fisionomia da feira popular: passeamos entre semblantes, gestos laborais, alimentos sendo preparados e vendidos.

Uma mistura de festa e fúria surge em cena. A luta dos trabalhadores emerge ao som de um samba acelerado. Nosso sangue esquenta diante do povo que se levanta para reivindicar seus direitos e fazer festa. A voz do cineasta contextualiza as imagens: estamos na primeira comemoração independente do dia do trabalhador em 15 anos de ditadura civil-militar. O local é o emblemático Estádio da Vila Euclides no ABC Paulista, onde os operários passaram a se reunir depois das intervenções no sindicato dos metalúrgicos. Os operários conseguiram efetivar a celebração com o auxílio de organizações civis-democráticas que foram ganhando força nos anos finais do regime ditatorial. Importante destacar que o filme não apenas procura traçar um retrato panorâmico do evento, mas também apresenta uma atenção às movimentações cotidianas, os mal entendidos, os pequenos conflitos, as discussões, os bastidores da organização social. O documentário termina com o registro de um belíssimo discurso de Lula que serve como vislumbre da abertura democrática porvir.
Greve de Março (1979) é um filme de autoria coletiva que representa bem o desejo de intervenção, participação e engajamento da filmografia do ciclo das greves dos metalúrgicos. As primeiras aparições da fita são fotografias de policiais patrulhando a cidade. A montagem confronta as imagens das forças policiais com fotos dos trabalhadores grevistas em ação. A voz de um operário narra os fatos: “A greve não foi decretada pelos trabalhadores. Foi decretada pela intransigência da classe patronal que só querem explorar os trabalhadores. Na hora de dar aumento não querem nem conversar. O negócio deles é conversar com as máquinas paradas”. Tambores começam a rufar em fricção com as imagens da polícia reprimindo os trabalhadores em passeata, gesto que dá o compasso do confronto entre Estado e o povo. Como outras obras deste programa, a escritura de Greve de Março segue uma orientação dialética - um filme tecido sob o signo do confronto que parece mimetizar as tensões sociais que procurou registrar.

Esta obra narra, portanto, os acontecimentos da greve de março de 1979 da perspectiva da classe trabalhadora que, no filme, é representada por testemunhos de operários e os discursos de Lula durante o período das paralisações. O final da obra mostra uma fala pública de Lula no Estádio do ABC após sua soltura, cena que foi amplamente registrada pelos documentários da época. Em seu discurso, o futuro presidente do Brasil pede que os operários retornem ao trabalho para que as negociações com a classe patronal continuem sem, no entanto, abaixar a moral dos trabalhadores. Lula e sua diretoria prometem que, se as reivindicações do movimento não forem atendidas, uma nova greve se iniciará. A habilidade discursiva do líder político fica escancarada pelo imediato sucesso de sua performance. Para o nosso espanto, a proposta obteve aceitação quase unânime dos mais de 100 mil operários reunidos na assembleia. Uma das expressões mais vigorosas do capital político de Lula neste período é, sem dúvidas, as imagens de mãos ao alto e punhos cerrados dos trabalhadores em aceite à proposta da diretoria do sindicato dos metalúrgicos de São Bernardo do Campo que vemos neste e em outros filmes do programa.

A obra se encerra com o líder dos operários sendo erguido nos ombros da multidão que grita: “Trabalhador unido, jamais será vencido!”, um dos grandes gritos de guerra de uma geração que se rebelou contra a tirania do capitalismo mundial que, como sabemos, sempre cresceu sob a tutela de ditaduras mais ou menos mascaradas de democracias.
Como outras obras do programa, ABC Brasil (1980), de José Carlos Asbeg, Luíz Arnaldo Campos, e Sérgio Péo é um curta-metragem libertário em sua forma - mas há aqui um movimento anárquico que escapa aos outros filmes apresentados neste mosaico. O documentário experimenta uma imersão sensorial na assembleia que encerra o filme anterior. Temos que admitir que esta é uma jóia do curta-metragismo brasileiro tanto pelos seus aspectos estilísticos quanto pelas instituições envolvidas em sua produção. Sobre a primeira razão, destaco sua beleza plástica, sua montagem artesanal que mais se parece uma colagem surrealista e a coreografia dos corpos em fúria que sua mise en scène ensaia. Produzido pela Associação Brasileira dos Documentaristas e Curta-metragistas (ABD) e Cooperativa dos Realizadores Cinematográficos Autônomos (CORCINA), o filme começa de forma incendiária com imagens avermelhadas ritmadas por um solo de guitarra de Jimmy Hendrix que, conjugados num experimento insuspeitado, incendeiam nossos sentidos - uma agitação frenética toma conta dos corpos dos espectadores que sentem a necessidade de dançar diante da fita. Um close numa fotografia mostra frontalmente uma das passeatas de trabalhadores de semblantes furiosos que estouraram nos anos 1979. Mãos aos altos e bocas abertas - o gesto e o grito. O zoom out revela a amplitude do evento: uma multidão ocupa as ruas da cidade.

Nos enganaremos se partirmos do pressuposto de que este é mais um filme sobre um dos mais famosos discursos de Lula durante a greve geral dos operários metalúrgicos em 1979. Como outras obras deste brilhante cineasta, ABC Brasil é um filme acrobático. Encontramos uma mise en scène que consegue deambular na paisagem da reunião sindical através de zooms e panorâmicas muito bem ritmadas, interrompendo nossa fruição para relatar os desdobramentos da luta dos metalúrgicos por meio da voz e de imagens fixas. O final intensifica o experimento sonoro de Péo: Lula é liberado da cadeia e volta ao Estádio da Vila Euclides. Ao som de Forró do ABC, de Moraes Moreira, vemos o líder sindical ser recebido com abraços, lágrimas e gritos de guerra. A luta continua. Essa é a lição do ABC.
Em A luta do povo (1980), Renato Tapajós, em aliança com a Associação Popular de Saúde (APS), nos mostra o imbricamento de diferentes movimentos populares nos anos 1970. A singularidade da obra reside nesse registro panorâmico que revela as conexões entre pautas sociais e movimentos de luta popular em São Paulo e sua periferia. A obra começa com uma cartela em fontes vermelhas sob o fundo negro que nos informa um ocorrido insípido: o assassinato do metalúrgico Santo Dias da Silva pela polícia durante a campanha salarial do movimento grevista do ABC paulista. A voz do narrador lê o escrito ao som de uma sirene de polícia. Um corte apresenta o umbral da Catedral da Sé, no centro de São Paulo. Um movimento vertical de câmera faz aparecer os trabalhadores em luto durante os ritos fúnebres da liderança operária covardemente assassinada. Seguimos o cortejo e a câmera focaliza a viúva do operário. Seu lamento rapidamente se converte num grito de guerra entoado pela multidão: “A luta continua!”. A cena é reveladora, uma vez que nos mostra uma passagem característica das lutas populares mundo afora. É justamente a perda e o luto que catapultam as revoltas populares. O lamento coletivo rapidamente se converteu em gesto de fúria.

O narrador não apenas contextualiza os eventos, mas também provoca reflexões, levanta interrogações em torno de problemas sociais da nação e condena o sistema de opressão que assola os pobres do Brasil. Não é um narrador neutro, mas sim um sujeito histórico implicado na situação histórica. O narrador da obra é, portanto, um personagem que toma uma posição diante dos acontecimentos e busca nas vozes dos operários as respostas urgentes da sociedade.

Os trabalhadores condenam a exploração capitalista do trabalho, a legislação trabalhista que não protege o trabalhador e uma série de problemas que não dizem apenas ao sistema de governo ditatorial do país, mas sobretudo às tramas dos capitalistas internacionais que lucram através de esquemas globais de exploração. A consciência dos trâmites transnacionais que sustentam as condições precárias de trabalho dos operários metalúrgicos são expostas com de maneira clara e inteligente por um dos trabalhadores entrevistados por Tapajós, um dos protagonistas do movimento grevista que ressurge em outras obras do programa, chamado Osvaldo.
Linha de Montagem (1982) efetua uma espécie de balanço histórico e crítico do movimento grevista dos anos 1978-1980 pela voz de seus protagonistas. Uma entrevista com Lula estrutura a navegação realizada pela obra por um labirinto de memórias das grandes greves. Outras figuras chaves do movimento sindical são entrevistadas a fim de contextualizar o período de confrontos do movimento operário no final dos anos 1970 e seus impactos na sociedade brasileira. Trata-se de uma obra comunicativa e de viés pedagógico que constrói uma narrativa histórica crucial para compreendermos as tensões sociais do passado do ponto de vista dos oprimidos e, também, pensarmos soluções para os desafios atuais da sociedade brasileira.
Santo e Jesus, Metalúrgicos (1983), de Cláudio Kahns & Antonio Paulo Ferraz é, sem dúvida alguma, a grande obra-prima do período. Em termos estilísticos, o filme apresenta uma organização textual singular ao confrontar personagens e vozes numa tessitura marcadamente dialética. É claro que este não é o único filme que apresenta o confronto como forma de organização dos fatos, mas é esta a obra que melhor incorporou o caráter contraditório do processo social registrado e narrado pelos cineastas engajados na luta dos operários paulistas. A dupla de documentaristas toma dois personagens emblemáticos do movimento sindical e seus respectivos assassinatos como um meio de não apenas mostrar, mas também compreender criticamente as grandes greves paulistas em toda sua complexidade. Para tanto, o filme se aventura na interpelação dos inimigos, isto é, os assassinos dos operários e seu entorno: as empresas, os patrões, a polícia e, por fim, o governo. A montagem dialética confronta o ponto de vista dos inimigos com imagens da luta dos operários. Uma das principais razões do brilhantismo desta obra reside no fato de Santo e Jesus, Metalúrgicos ser uma obra resultante de um gesto radical de observação, provocação e desautorização carnavalizada dos donos do poder. Ao virar as suas câmeras com especial habilidade para os empresários e seus advogados falastrões, os policiais brutais e suas mentiras absurdas, esses documentaristas produziram imagens raras que serviram, na mesa de montagem, como material de construção para um filme que fricciona violenta e, às vezes, ironicamente, as aparições dos algozes e as figuras da resistência. Se todos os filmes mostrados neste programa mostram, cada qual à sua maneira, o movimento dos movimentos sociais, é, sem dúvidas, Santo e Jesus a obra que acertou em cheio o ritmo dessa movimentação: o ritmo da morte e do luto convertido em fúria.
Por fim, chegamos à obra mais estudada e lembrada do período das greves de 1979-1980: ABC da Greve (1990), de Leon Hirszman. Este é um filme curioso, pois foi realizado em dois momentos. O documentário foi rodado entre 19/03 e 19/05 de 1979, mas só foi finalizado três anos depois da morte do diretor. Isso só foi possível pela iniciativa do fotógrafo Adrian Cooper, que montou o material bruto que restou das filmagens. A obra é, portanto, uma configuração complexa e de autoria compósita, ainda que Cooper tenha tentado seguir fielmente as intenções de Hirszman. Outro aspecto importante do modo de produção da obra é sua filmagem foi um experimento para a pesquisa de outra obra, o drama ficcional Eles não usam black-tie (1981), adaptação da peça homônima de autoria de Gianfrancesco Guarnieri, do Teatro de Arena. ABC da Greve acompanha o movimento grevista com especial atenção à figura de Lula num estilo panorâmico que não deixa de mostrar cenas em que o diretor, tal qual um investigador, interpela os representantes do polo oposto do conflito laboral. O filme transita entre assembleias, fábricas, protestos, negociatas, panfletagem nos bairros e outras atividades de maneira fragmentária, montando um verdadeiro mosaico da memória das greves com atenção aos bastidores e aos resíduos das cenas mais emblemáticas. Esta é, sem dúvidas, uma obra de viés monumentalizante que narra a epopeia dos trabalhadores metalúrgicos do ABC Paulista no final dos anos 1970.
Diante destas preciosas imagens, o ceticismo nos acomete: o que fazer com essas imagens do passado num tempo em que o trabalho e o trabalhador se encontram numa violenta crise? Mas o mundo não se transformou completamente, de modo que seria impossível identificar semelhanças entre essas reminiscências e a nossa situação atual? O cinema brasileiro dos últimos 20 anos, com exceções importantes como filmes de Affonso Uchôa, Adirley Queirós, Juliana Rojas, Marco Dutra, Dácia Ibiapina, Renan Rovida e outras, relegou o trabalhador ao esquecimento, ainda que o momento atual nos demonstre sinais de renovação na figuração das novas modalidades do proletariado urbano. Seja como for, é um fato conhecido que o operário se tornou um personagem fantasma na política e na cultura. Uma forma de pensar criativamente essas imagens é usando-as em nosso presente de novas aspirações, desafios e perigos. É possível apontar novos caminhos a partir dessa montagem entre o passado e o presente? O que essas histórias dos operários das fábricas do passado nos dizem sobre o mundo dos entregadores e motoristas das ruas do presente? Sem o objetivo de responder perguntas complexas num curto ensaio, posso apenas afirmar que o mundo do precariado urbano contemporâneo é de fato radicalmente diferente do universo do chão de fábrica, mas as formas atualizadas de exploração carregam sobrevivência das opressões de outrora e, fato notável, a greve continua sendo uma das principais táticas de guerra dos trabalhadores.

Considero importante lembrar que a classe trabalhadora e Lula, sua principal liderança, surgiram no tabuleiro da política e da cultura brasileiras durante a crise da ditadura civil-militar brasileira e Jair Messias Bolsonaro ganhou poder e assumiu a Presidência da República na crise da democracia representativa que se iniciou em 2013. Podemos concluir que o que está em disputa hoje no Brasil é a construção de um novo corpo político das entranhas da nossa catástrofe atual: o mundo do precariado. Das vísceras do mundo dos trabalhadores sem direitos podem surgir as centelhas de esperança de uma nova transformação social. Articular as imagens das greves dos metalúrgicos e da ascensão da classe trabalhadora como personagem num contexto de acirramento das contradições econômicas, sociais e culturais desta triste República é, ao fim e ao cabo, levantar interrogações, efetuar provocações e abrir os olhos para o improvável, o invisível. Se um levante não se realiza sem cantos, devemos olhar atentamente para as ruínas do capitalismo e este “admirável mundo novo” que se configurou nas últimas décadas para, então, cantar um outro mundo possível. Não é atoa que as principais tendências atuais do cinema independente brasileiro produziram obras que estranham este mundo distópico a partir de pólos opostos, mas que, hoje sabemos, podem confluir em experimentos explosivos: o documentário e a ficção especulativa - o cinema “sob o risco do real” e as fábulas fantasiosas que radicalizam as contradições do presente. Seja como for, os filmes realizados nas greves dos metalúrgicos representam um período não apenas de intensa experimentação estilística no documentarismo nacional, mas também um verdadeiro laboratório estético político em que uma estética do grito foi germinada em aliança com os oprimidos. Esses filmes nos ensinaram que um cinema em fricção com o mundo é um caminho fértil para juntar a experimentação estilística com a intervenção política.